sábado, 26 de janeiro de 2013


_ Munch_Camões - "Livro de Job", Bíblia Sagrada




Edvard Munch. O Grito. 1893    - aqui -


Edvard Munch. O Grito. 1910    - aqui -




 "Livro de Job" (excerto)

Depois de tudo isto, Job abriu a boca e amaldiçoou o dia do seu nascimento.
E falou desta maneira:
Pereça o dia em que nasci e a noite em que foi dito:
foi concebido um varão!
Converta-se esse dia em trevas!
Deus, lá do alto, não Se incomode com ele,
nem a luz resplandeça sobre ele.
Apoderem-se dele as trevas e a obscuridade.
Que as nuvens o envolvam, e os eclipses o apavorem!
Que a sombra o domine; não se mencione esse dia entre os dias do ano,
nem se compute entre os meses!
Seja estéril tal noite
e não se faça ouvir nela nenhum grito de alegria.

"Livro de Job", Bíblia Sagrada


O dia em que nasci moura e pereça,

O dia em que nasci moura e pereça,
Não o queira jamais o tempo dar;
Não torne mais ao Mundo, e, se tornar,
Eclipse nesse passo o Sol padeça.

A luz lhe falte, O Sol se [lhe] escureça,
Mostre o Mundo sinais de se acabar,
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
A mãe ao próprio filho não conheça.

As pessoas pasmadas, de ignorantes,
As lágrimas no rosto, a cor perdida,
Cuidem que o mundo já se destruiu.

Ó gente temerosa, não te espantes,
Que este dia deitou ao Mundo a vida
Mais desgraçada que jamais se viu!

Luís de Camões


sexta-feira, 18 de janeiro de 2013


Intertextualidade_ Camões - Gedeão - Fanhais/Cabral





Poema da auto-estrada

Voando vai para a praia
Leonor na estrada preta.
Vai na brasa, de lambreta.

Leva calções de pirata,
Vermelho de alizarina,
modelando a coxa fina
de impaciente nervura.
Como guache lustroso,
amarelo de indantreno,
blusinha de terileno
desfraldada na cintura.

Fuge, fuge, Leonoreta.
Vai na brasa, de lambreta.

Agarrada ao companheiro
na volúpia da escapada
pincha no banco traseiro
em cada volta da estrada.
Grita de medo fingido,
que o receio não é com ela,
mas por amor e cautela
abraça-o pela cintura.
Vai ditosa, e bem segura.

Como um rasgão na paisagem
corta a lambreta afiada,
engole as bermas da estrada
e a rumorosa folhagem.
Urrando, estremece a terra,
bramir de rinoceronte,
enfia pelo horizonte
como um punhal que se enterra.
Tudo foge à sua volta,
o céu, as nuvens, as casas,
e com os bramidos que solta
lembra um demónio com asas.

Na confusão dos sentidos
já nem percebe, Leonor,
se o que lhe chega aos ouvidos
são ecos de amor perdidos
se os rugidos do motor.

Fuge, fuge, Leonoreta.
Vai na brasa, de lambreta.

António Gedeão, Máquina de Fogo, 1961






segunda-feira, 14 de janeiro de 2013


Intertextualidade _ Camões - Manuel Alegre





Aquela triste e leda [1] madrugada,
cheia toda de mágoa e de piedade,
enquanto houver no mundo saudade,
quero que seja sempre celebrada.

Ela só, quando amena e marchetada[2]
saía, dando ao mundo claridade,
viu apartar-se d’ ua outra vontade,
que nunca poderá ver-se apartada.

Ela só viu as lágrimas em fio,
que duns e d’outros olhos derivadas,
s`acrescentaram em grande e largo rio.

Ela viu as palavras magoadas,
que puderam tornar o fogo frio,
e dar descanso as almas condenadas.

Camões




[1] Leda - alegre
[2] Marchetada  - bela, colorida





E alegre se fez triste

Aquela clara madrugada que
viu lágrimas correrem no teu rosto
e alegre se fez triste como se
chovesse de repente em pleno Agosto
Ela só viu meus dedos nos teus dedos
meu nome no teu nome. E demorados
viu nossos olhos juntos nos segredos
que em silêncio dissemos separados.
A clara madrugada em que parti.
Só ela viu teu rosto olhando a estrada
por onde o automóvel se afastava.
E viu que a pátria estava toda em ti.
E ouviu dizer-me adeus: essa palavra
Que fez tão triste a clara madrugada.

Manuel Alegre, O Canto e as Armas