segunda-feira, 24 de setembro de 2012


Memória




II
É difícil saber qual é a nossa primeira recordação. Lembro-me distintamente do dia do meu aniversário quando completei três anos. Lembro-me como me senti importante. Tomávamos o chá no jardim – uma parte do jardim em que, anos mais tarde, uma rede balançava suspensa entre duas árvores. A mesa estava repleta de doces, o bolo do aniversário coberto com açúcar e com as competentes velas. Três velas. E uma estranha ocorrência – uma minúscula aranha vermelha, tão pequena que eu mal podia enxergá-la, corria pela toalha. E a minha mãe a dizer: - É uma aranha que dá sorte, Agatha, um bom augúrio para o teu aniversário…
Depois, a memória esvai-se, guardando apenas as reminiscências fragmentárias de uma interminável discussão mantida com o meu irmão, relacionada com o número de doces de creme que ele tinha licença de comer.
Encantador, seguro e, no entanto, excitante mundo da infância! […]

Agatha Christie, Autobiografia. Trad.: Maria Helena Trigueiros. Lisboa, Livros do Brasil. 1977. Pp. 20-21

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É difícil escrever um livro. Não se sabe por onde começar nem por onde seguir. Não se sabe sequer quem é quem. Por exemplo: este miúdo sentado no pátio de uma casa na Rua Duque da Terceira, no Porto, a pregar pregos muito direitos numa tábua. Quem me garante ao certo que sou eu? […]
Vá lá saber-se quem é o miúdo que sobe ao andar de cima e vê a mãe numa grande cama entre lençóis muito brancos a mostrar-lhe um embrulho pequenino de onde sai uma cabeça cheia de pêlos negros.
– É a tua irmã – diz a mãe.
Ao que o miúdo (talvez eu) responde com (dirão mais tarde) uma inconveniência.

Manuel Alegre, O Miúdo que pregava pregos numa tábua, Lisboa, D. Quixote, 2010, pp. 11-12

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Parti de camioneta para Lisboa, já no fim de Setembro. Não sei se a manhã estava cinzenta e triste ou se foi assim que ela se gravou na minha memória. Como saber o que é e o que não é, o que se inventa e acrescenta e o que se corta e encurta?
Senti um aperto na garganta ao passar a ponte. Olhei o rio, a nora, os salgueiros, os campos. Alma, dizia eu. Como quando era pequeno e dizia mãe.

Manuel Alegre, Alma, Lisboa, Planeta de Agostini, 1999, pág, 225

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Tu estavas, avó, sentada na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabias e por onde nunca viajarias, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e disseste, com a serenidade dos teus noventa anos e o fogo de uma adolescência nunca perdida: «O mundo é tão bonito e eu tenho tanta pena de morrer.» Assim mesmo. Eu estava lá.

José Saramago, As pequenas Memórias

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E foi por esta época que principiei a sentir-me deus. Não faças confusão: era sempre, era mais que nunca aquele mesmo homem alimentado de frutos e de animais da terra, restituindo ao solo os resíduos dos seus alimentos, sacrificando ao sono a cada revolução dos astros, inquieto até à loucura quando lhe faltava por demasiado tempo a cálida presença do amor. A minha força, a minha agilidade física ou mental eram cuidadosamente mantidas por uma ginástica toda humana. Mas que dizer senão que tudo isto era divinamente vivido? As ousadas experiências da juventude tinham acabado, assim como a sofreguidão de gozar o tempo que passa. Aos quarenta e quatro anos sentia-me sem impaciência, seguro de mim, tão perfeito quanto a minha natureza me permitia, eterno. E compreende bem que se trata, neste caso, de uma concepção do intelecto: os delírios, se este nome se lhes pode dar, vieram mais tarde. Era deus simplesmente porque era homem.

Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano seguido de Apontamentos sobre as Memórias de Adriano. 2.ª ed. Trad: Maria Lamas. Ulisseia,1983, p. 124

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Em Boliqueime o mundo era perfeito. Os pombos voavam pelos telhados e tinham medo dos gatos. Os gatos dormiam pelos poiais e tinham medo do cão. As galinhas tinham medo dos perús com aquele leque. As mulas tinham medo do cavalo que as escoiceava. Essas relações de força eram muito importantes porque os grandes venciam os pequenos e tudo era claro.
Por vezes, porém, as regras eram outras. Assim, o ouriço era mais pequeno do que o cão mas defendia-se, espetando todas aquelas armas. Os gatos eram corpulentos mas fugiam quando em Junho aparecia a cobra. Até o porco redondo e sujo subia pelas paredes quando ela se lhe enrolava na pia. Mas essa era venenosa. Por isso o medo provinha não só do peso do grande mas também do pequeno e venenoso.
Aliás, também entre as pessoas a harmonia era absoluta. A bisavó, que não via, andava devagarinho pela casa e esperava o dia inteiro pela hora em que lhe dessem a pelar os legumes. O marido dela ainda via e mandava nela, fazendo-a calar. Ela obedecia e tinha medo dele. A mãe e as tias tinham medo do pai e dos tios. Todos eles andavam apressados pela casa, muito mais do que os avós, pois esses, a meio da tarde, ficavam pensativos. Assim sendo, era a bisavó que tinha medo de todos, inclusive do cão, da cobra e do peru, e até mesmo do gato quando o abraçávamos e espremíamos. Sentada, imóvel, ela tinha medo de nós mesmos.
Certo dia, porém, essa relação mudou, pois o pai ofereceu à mãe uma toalha de plástico. Esse ainda era um tecido desconhecido. Não tinha fio, não amarrotava e limpava-se com um pano, embora derretesse com o fogo. Foi estendida para que todos pudessem admirar o tecido novo. A toalha era branca e em cada canto tinha um cacho de uvas vermelhas e umas parras enormes cor de prata. Um bem tão particular deveria ser usufruído por todos. A toalha deveria ficar exposta num local privilegiado da casa. Ora no corredor havia uma mesa onde ela brilhava e fosforescia. As pontas da toalha quase rojavam o chão. O cão, vagueando pela casa, logo aí encontrou um abrigo. Fui atrás do cão e para meu espanto, aquele era o recinto há tanto procurado. O tampo da mesa constituía um tecto, e cada uma das abas da toalha era uma parede. O quarto de dormir das minhas bonecas, a partir daquele instante, tinha pois quatro paredes. Abri-lhe as camas, coloquei-lhes as mesas sob a mesa do corredor. Era pena que nenhuma das paredes tivesse janela. Só que dentro da caixa da costura havia uma tesoura e com ela se abria uma verdadeira janela numa das paredes. A janela ficou larga e o tecido retirado era a medida da toalha que tapava a mesa das bonecas posta sob a mesa. Alguém podia imaginar maior perfeição? Brincando debaixo da mesa, com um buraco na toalha, via-se as pessoas passarem como se fosse uma verdadeira janela.
Mas alguém, de repente, estacou em frente da pequena janela. A mãe começou aos gritos, o cão saiu ladrando como se alguém arrombasse a casa, quem estava em casa apareceu num instante com água e panos. Um dos tios não tinha mas era como se tivesse pegado na caçadeira. Aquele iria ser o meu último instante. Alguém me iria matar, eu não teria mais salvação. Também a bisavó avançava devagarinho perguntando que é, que é. E o que é, que é, era eu que havia feito uma horrível imperfeição. Não chorava a mãe, sentada na cadeira? Não a abraçava a tia? O meu castigo iria ser grande, tão grande como aquele que a cobra infligia ao rato. Por isso mesmo só a bisavó, que tinha medo de todos, me levava pela mão. O que iria ser de mim, protegida apenas pela mão da bisavó que não via? Ah! Mas ela ajeitou a minha cabeça no seu colo, protegeu-me dos puxões da minha tia, das invectivas da minha mãe. Ela não me largou enquanto não chegou a noite, e mesmo assim, ela levou-me consigo e deitou-me ao seu lado, e a força da sua protecção foi tão forte que eu percebi que ela era mais forte do que o pai, o avô que era seu filho, os tios todos juntos, a cobra, o cavalo, o cão e o peru. Próximo da sua cabeça que não via, o próprio dia desapareceu sem receio da noite e as suas mãos mostraram um poder desconhecido. Foi, pois, assim. Uma força fez estremecer a harmonia do mundo em Boliqueime, mas uma outra, feita de outra força, aparecia. Para sempre aparecia.

Lídia Jorge, “Harmonia”

[Texto do desdobrável da exposição "O Dia dos Prodígios. Lídia Jorge. 30 anos de Escrita Publicada", que esteve patente no Convento de Santo António em Loulé, até 31 de Março 2011]

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Tinha oito anos. Naquela altura, não havia nada mais importante para mim do que o baseball. A minha equipa era os New York Giants e seguia os feitos daqueles homens de bonés preto e laranja com a devoção de um autêntico fiel. Ainda hoje, recordando aquela equipa que já não existe, que jogava num estádio que já não existe, recupero os nomes de quase todo o alinhamento.Alin Dark, Whitey Lockman, Don Mueller, Johnny Antonelli, Monte Irvin, Hoyt Wilhem. Mas não havia maior, não havia mais perfeito, nem mais merecedor de adoração do que o Willie Mays, o incandescente Say-Hey Kid.
Levaram-me, naquela Primavera, ao meu primeiro jogo da primeira divisão. Uns amigos dos meus pais tinham bilhetes de camarote nos Polo Grounds e, numa noite de Abril, fomos em grupo ver jogar os Giants contra os Milwaukee Braves.
Não sei quem é que ganhou, não me lembro absolutamente nada do jogo, mas lembro-me que, depois de o jogo acabar, os meus pais ficaram a conversar com os amigos deles, até todos os espectadores se terem ido embora. Ficámos até tão tarde que tivemos de atravessar o campo e sair pela porta do meio, que era a única que ainda estava aberta. Essa saída ficava mesmo por baixo dos balneários dos jogadores.
Ao aproximar-me da parede, avistei o Willie Mays. Não havia dúvida que era ele. Era mesmo o Willie Mays, já sem o equipamento, vestido com a roupa normal, ali nem a três metros de mim. Consegui manter as pernas a andar na sua direcção e depois, reunindo toda a minha coragem, obriguei as palavras a sair: "Senhor Mays, - disse eu - podia dar-me um autógrafo, por favor?".
Ele devia ter vinte e quatro anos feitos, mas não consegui tratá-lo pelo primeiro nome.
A reacção dele à minha pergunta foi brusca, mas cordial. "Claro, miúdo" disse ele. "Tens aí um lápis?". Ele tinha tanta vida, lembro-me, estava tão cheio da energia da juventude, que não parava quieto e continuava aos saltinhos enquanto falava.
Eu não trazia um lápis, e pedi ao meu pai que me emprestasse um. Mas ele também não tinha. Nem a minha mãe. Nem, como depois se viu, nenhum dos adultos.
O grande Willie Mays ficou ali a olhar-nos em silêncio. Quando se tornou claro que ninguém no meu grupo tinha com que escrever, virou-se para mim e encolheu os ombros. "É pena, miúdo" disse ele, "não tens lápis, não posso dar autógrafo." E saiu do estádio, para a noite.
Não queria chorar, mas as lágrimas começaram a correr-me pela cara abaixo e não conseguia pará-las. Pior ainda, no carro chorei no caminho todo até casa. Sim, estava esmagado pela decepção, mas também me revoltava contra mim próprio por não conseguir conter as lágrimas. Já não era um bebé. Tinha oito anos e os miúdos crescidos não deviam chorar por causa de coisas destas. Não só não tinha um autógrafo do Willie Mays, como não tinha mais nada. A vida pusera-me à prova e eu não estivera à altura.
Depois dessa noite, comecei a levar sempre um lápis, para onde quer que fosse. Tornou-se um hábito nunca sair de casa sem ter a certeza de que tinha um lápis no bolso. Não é que eu tivesse quaisquer planos especiais para aquele lápis, mas não queria ser apanhado desprevenido. Tinham-me apanhado uma vez de mãos vazias, e eu não ia deixar que isso voltasse a acontecer.
Se não aprendi mais nada, os anos ensinaram-me ao menos isto: se há um lápis no bolso, há boas hipóteses de que um dia nos venha a tentação de o usarmos.
Como gosto de dizer aos meus filhos, foi assim que me tornei escritor.

Paul Auster, Porquê escrever?


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Uma menina de tranças

Eu tinha 15 anos quando salvei uma menina. Ela teria quase a minha idade e nunca soube exatamente como tombou naquela espécie de alçapão, numa noite de Março de 1970. Nem foi salva por um tímido  distraído que buscava um alçapão para se esconder do mundo.
Era a noite do baile dos finalistas da Escola Técnica. Eu não era de alegrias. Já nessa altura, as festas eram um momento em que, pela lei dos avessos, me deixava afundar por uma tristeza imensa e os meus pés se pregavam ao chão. Para além disso, eu pertencia à outra tribo: os do Liceu. Sem misturas, sem complacências. Eram razões de peso para ter ficado em casa.
Naquela noite, porém, a minha malta decidiu ver as miúdas e eu não pude senão juntar-me ao cortejo de caçadores em busca de troféus, quase sempre inventados. Passo arrastado, disputando o lugar menos visível, deixava que os outros seguissem à frente. Na realidade, pouco importava tomar a dianteira: nenhum de nós estava autorizado a entrar no recinto do baile. Contentávamo-nos em assomar às janelas, espreitando, como no cinema, a alegria dos outros.
Mas espreitar era uma ousadia suficiente e havia mesmo hierarquia no acesso à vitrina. Eu sabia o meu lugar, que era a ausência de lugar. Arredei-me, pois, da montra luminosa, procurei refúgio entre entulhos de obras e ali fiquei medindo estrelas e entretendo a imaginar-me um outro, mais seguro, capaz de fumar, beber, e fazer conversa com as miúdas.
Foi quando escutei um ruído de algo tombando em fundo de água. Procurei entre o chão: uma tampa de sarjeta de esgotos estava aberta. De súbito, de dentro desse vão escuro, um novo ruído me alertou. Certamente um cão tombara e se debatia para se salvar. Pedi por um isqueiro. Quando a chamazinha deflagrou vi, aterrado, uma mão que se agitava à superfície das águas negras. A mão fundou-se, a chama apagou-se, o meu coração disparou. Os dedos se embrulharam com os nervos e não mais fui capaz de reacender o maldito isqueiro. Ao acaso, varri com o oco daquele desvão como uma rede de pescador cego. Senti, então, uma mão cravar-se, em desespero, no meu braço. Puxei com tanta força, talvez demasiada força. Porque uma franzina menina emergiu das profundezas como rolha de champanhe. Ela ficou de pé, sem se decidir pela lágrima, um desembrulho molhado, ressuscitado espantalho. As pessoas passavam por ela e não davam conta da tragédia que ali quase se consumara. Vivemos por um triz, morre-se como chama que tropeça no súbito escuro. Olhei a moça, mais rarefeito que refeito. Demorou um tempo até que a visão se acertasse nela: era mulata, de pele clara, vestido branco de tule com fitas de cetim que, até há instantes, teriam sido de imaculado rosa. Os cabelos estavam arrumados em duas longas tranças e escorriam uma aguadilha suja e mal cheirosa. Adivinhei que envergara um chapelinho a condizer com o cetim e que o adorno ficara afundado no fétido esgoto.
Pedi-lhe que viesse comigo para procurar os pais. Ela seguiu-me com passo mecânico. Minutos depois deparamos com a família que de semblante carregado, rebuscava os cantos à teira.
E foram gritos e suspiros, mãos subidas aos rostos de tanto espanto ao reverem a mocinha ali defronte, escorrendo como se ela mesmo estivesse chovendo. Após um alívio inicial e ao constatar, depois, o estado deplorável da menina, a mãe avançou e aplicou-lhe um vigoroso par de bofetadas:
- Não se pode virar costas que já te sujaste toda!
Seria o momento certo para salvar a moça pela segunda vez. Mas fiquei-me, pela intenção, parado e calado, vendo a menina, que não tinha chorado no limiar da morte, a ser arrastada, agora, em lágrimas, de regresso a casa. Eu tinha 15 anos, a timidez me atrapalhava a idade. A partir dessa noite, porém, eu já não precisava de sair em excursão para espreitar as miúdas nas montras luminosas dos bailes públicos. Eu tinha a minha vitrina interior. E lá estava a moça mulata, com suas tranças enxutas, seu impecável vestido de tule, me estendendo o braço e me dizendo: - Esperava por ti!
Nunca mais a voltei a ver. Nem nunca fui por ela esperado. Mas, hoje, sei: não fui apenas eu que salvei uma vida. Aquela menina me salvou da sombra, concedendo-me várias vidas sonhadas. Talvez eu tenha começado a ser escritor nesse dia em que me debrucei num esgoto escuro e retirei das trevas uma menina de tranças.
Mia Couto, "Uma menina de tranças', Jornal de Letras, Artes e  Ideias, 15-28 de Março de 2006

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segunda-feira, 17 de setembro de 2012

TEXTOS DE CARÁCTER AUTOBIOGRÁFICO



O mito de Narciso é a representação mais evocada a propósito da escrita autobiográfica. Narciso que se contempla nas águas e se apaixona pela sua imagem é também um duplo ser: simultaneamente o eu que olha e o outro que é olhado, o sujeito e o objecto do desejo. Narciso é, ao mesmo tempo, realidade e ilusão: tem um corpo verdadeiro, e enamora-se desse corpo reflectido.
Clara Rocha, Máscaras de Narciso, Coimbra, Almedina, 1992, pp.50-51



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Caravaggio, Narciso.1599



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Narciso

Dentro de mim me quis eu ver. Tremia,
Dobrado em dois sobre o meu próprio poço...
Ah, que terrível face e que arcabouço
Este meu corpo lânguido escondia!

Ó boca tumular, cerrada e fria,
Cujo silêncio esfíngico bem ouço!
Ó lindos olhos sôfregos, de moço,
Numa fronte a suar melancolia!

Assim me desejei nestas imagens.
Meus poemas requintados e selvagens,
O meu Desejo os sulca de vermelho:

Que eu vivo à espera dessa noite estranha,
Noite de amor em que me goze e tenha,
...Lá no fundo do poço em que me espelho!

José Régio, in Biografia

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Narciso

De n'água contemplar-se onde se vê Narciso
se inclina sobre si para beijar-se e a imagem
avança em lábios trémulos que o respirar
ansioso escrespa o espelho prestes a partir-se.

Não foi de contemplar-se ou de a si mesmo amar-se
que em limos se fundiu com a sua imagem vácua
mas de não ter sabido quando não de olhar
nem só de húmidos beijos se perfaz o amor.

Jorge de Sena, 9/7/1970

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Narciso

Ouço dizer que as águas cantam o amor, correndo,
e que nas suas margens há arbustos debruçando
tristezas profundas. Mas nem as águas nem o vento
nos arbustos me falam de mim; eu que solitário
me debruço numa ânsia de tocar-me, e o rosto perco
no abismo da superfície; que o segredo que oculto
em mim persigo, num silêncio me evocando entre
os alheios rumores da vida; e que o tempo esqueço,
absorto na minha própria alma que obscureço.

Nuno Júdice, Obra Poética (1972-1985), Lisboa, Quetzal, 1991, p.281

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Narciso

Curvei, sobre o regato, o corpo todo...
Porém, mal entrevi o meu retrato,
que foi olhar e as águas do regato
se turbaram, manchadas do meu lodo.

Depois, cavei cá dentro com denodo;
perfumei-me de flores azuis do mato;
e, quando cri expulso o lodo inato,
mais uma vez curvei o meu corpo todo.

E as águas tardaram em toldar...
Mas debruço-me ainda, pois espero
que me hão-de um dia, claras, espelhar.

Tanto faz ver-me belo ou feio, então;
só cristalinas, límpidas, as quero,
prà tua sede antiga, meu Irmão.

Sebastião da Gama, Itinerário Paralelo

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*** biografias -  http://www.leme.pt/biografias/


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