quarta-feira, 26 de novembro de 2014







Maria do Rosário Pedreira


em ­


http://horasextraordinarias.blogs.sapo.pt/


 






Como em tudo na vida, é preciso saber onde aperta o sapato, mas parece que tomei o gosto a estas brincadeiras, e hoje permito-me explorar o vestuário na língua portuguesa, que é tudo menos um espartilho – na verdade dá pano para mangas – quando uma pessoa percebe como descalçar a bota. Pois bem, agora que andamos todos de tanga, que fazem de nós gato-sapato e não temos outro remédio senão apertar o cinto no último furo, há por aí uns senhores que cometem crimes de colarinho branco a quem nada de grave acontece: o pé-de-meia que têm chega-lhes para o resto da vida – e isso é uma pedra no nosso sapato. Mas de nada serve cortarmos-lhes na casaca, porque, mesmo metidos numa camisa de onze varas ou num colete-de-forças, é provável que não sejam sequer julgados (ou que alguém tenha recebido luvas para os safar, sei lá, ajudando-os a sacudir a água do capote). Nós, pelo contrário, que não enfiamos a carapuça por pecadilhos deste teor, andamos todos de calças na mão, quando não a apanhar bonés, e vemo-nos todos os dias obrigados a arregaçar as mangas para nos sustentarmos se não queremos bater a bota cedo demais. Se perguntam se acho isto justo, pois dir-vos-ei que essa é quase uma pergunta de algibeira, obviamente não bate a bota com a perdigota ver um criminoso ser tratado com punhos de renda ou luva branca (mesmo sendo eu bota-de-elástico); mas infelizmente há por aí muito lambe-botas a quem a corrupção assenta como uma luva e que, depois de uma boa combinação, é capaz de pregar barretes à direita e à esquerda em defesa destes senhores (senhores, qual carapuça!); alguns até viraram a casaca e agora vestem a camisola por eles, conseguindo meter em seu lugar na cadeia apenas um dos seus mangas-de-alpaca, num golpe de se lhes tirar o chapéu. Enfim, não podendo eu dar-lhes as mil sapatadas que merecem, resta-me ir ler um livro de bolso para me distrair destas ignomínias; quem não goste de ler pode também dançar sapateado, ou apanhar uma touca para se alienar, ou perseguir o primeiro rabo de saias que encontrar, retirar-lhe o cinto de castidade e... divertir-se, em suma (usando camisa de vénus, claro). Bem, isto hoje ia dando bota... Mas, se não gostaram, olhem, chapéu!



P.S. Escrevi este post há mais de uma semana, na verdade, e parece irónico que ele seja publicado hoje. Contudo, quero dizer que estava a pensar nos «banqueiros» quando o escrevi.


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Hoje é dia de falar de palavras e expressões que os nossos jovens provavelmente já não usam e que é importante que apareçam de vez em quando em textos e conversas, para que não morram. Um dia destes, por exemplo, a minha mãe contou-me que tinha ido de escantilhão ao supermercado e que estava cansada porque andara toda a semana numa fona (note-se, tem 90 anos, mas ainda não está a cair da tripeça). Como a arenga não parecia terminar, achei por bem pôr-me na alheta. Há pessoas muito mais novas do que ela que são um pelém (adoro esta, usada frequentemente pelo escritor Mário Cláudio e que me cheira a infância, pois a minha avó paterna aplicava-a a meninos que adoeciam por tudo e por nada, sempre queixosos). Outra palavra que desapareceu do uso corrente – e se calhar ainda bem – é enjeitadinha, originalmente referindo-se a criança rejeitada ou abandonada pelos pais e presente em muitos fados da primeira metade do século XX. Tal como a expressão a esmo, que eu aprecio pela sonoridade estranha e que é hoje quase sempre substituída por «ao acaso», «à toa» ou «indistintamente». Um dia disse a uma rapariga que cortara o cabelo que lhe tinha feito bem ir ao baeta; ficou na mesma, não conhecia a expressão. Por fim, três outras palavras que só as pessoas de alguma idade ainda usam: pífio (já ouvi o professor Marcelo dizê-la a propósito de uma remodelação governamental insignificante); flausina (o mesmo que sirigaita) e capitosa (que vem de capo, cabeça, e significa «obstinada», mas sempre a ouvi designar louras que causam impressão indelével). E pronto, para o mês que vem, há mais.


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Como há uns tempos os Extraordinários se divertiram com um texto que aqui publiquei sobre «vegetarianismo linguístico», resolvi voltar à carga e dizer que, para evitar os males da carne vermelha, sempre podemos recorrer às aves e fazer, na mesma, um brilharete lexical. Senão, vejamos: No galinheiro de um estádio de futebol, pode ser triste um adepto ver perder a sua equipa por causa de um frango – é, na verdade, um galo se isso acontecer e até o pode deixar com pele de galinha; pior ainda é se, à saída, está a chover e chega a casa um pinto. Se assim for, mais vale à mulher, que é uma gralha, calar o bico (antes que ele lhe corte o pio), comer como um pisco e a correr a sopa a ferver (o que vale é que tem goela de pato) e ir deitar-se com as galinhas para evitar discussões (já tem penas que cheguem). O seu vizinho, um pato-bravo da habitação clandestina, casado com uma perua de nariz aquilino com a mania das grandezas, queria multiplicar a fortuna, acreditou na galinha dos ovos de ouro (foi um pato), contou com o ovo no cu da galinha, mas o negócio trazia água no bico e, afinal, acabou depenado (mais valia um pássaro na mão, disse-lhe a mãe, uma pata-choca com pés de galinha debaixo dos olhos). Por sua vez, o sobrinho, um borracho que tinha o hábito de se pavonear por aí, verdadeiro galifão, pôs-se a galar a pombinha do andar de cima, que era o patinho-feio do prédio, papagueou-lhe uns poemas de amor, ela derreteu-se, caiu que nem um patinho, mostrou-lhe a passarinha (no Norte seria o pito) e agora vem aí a cegonha – e tomara que a rapariga seja uma mãe-coruja, porque o rapaz é um galo doido, capaz de a trocar por uma pega à primeira oportunidade (estes galarotes deviam era morrer como tordos, comentou a mãe da desonrada). Gostaram? Estou a tornar-me uma ave rara, mas escarafunchar nos dicionários é ou é não o ovo de Colombo?

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Cada vez conheço mais gente que deixou de comer carne. Reconheço que a carne, sobretudo a vermelha, não faz muito bem à saúde – e até como bastante peixe quando estou na Ericeira, porque lá é bom e fresco – mas não sei se estaria pronta para me alimentar apenas de vegetais, como algumas pessoas que conheço. Em todo o caso, a nossa língua também pode ser vegetariana e, mesmo assim, rica. Quanto a fruta, temos desde logo um homem bonito a quem se pode chamar um figo e que, para algumas mulheres, é um pêssego. Se esse homem usa uma barba reduzida, usa pêra, embora também possa levar um pêro se houver briga e a coisa azedar (o que não é pêra doce). Se nos deixa na mão, ficamos, pois claro, com um melão. Conhecemos pessoas de ginjeira, se as conhecemos bem. Um banana é um parvo, enquanto uma coisa aborrecida é uma pessegada. Todos temos maçãs no rosto e os homens ainda têm maçã-de-adão. Uma coisa de assombro é de escacha-pessegueiro (já tinham ouvido esta?) e, quando é simplesmente areia demais para a nossa camioneta, dizemos vulgarmente que é muita fruta. Com os legumes, o português é igualmente criativo. Uma pepineira é uma pechincha e o que é seguro são favas contadas. Anda-se à batatada quando há tareia. Pode ter-se cabeça de abóbora e de alho chocho. Os lisboetas são alfacinhas, os desajeitados são nabos, os ruivos são cenouras, os narizes grandes são pencas. Ficamos num molho de brócolos quando estamos de rastos (se calhar em virtude de nos termos metido numa alhada). Os tomates são o nome mais comum dos testículos. Ficar com os louros também é comum a quem rouba vitórias alheias. Se o nosso interlocutor não quer perceber o que lhe dizemos, podemos comentar: Olha, batatinhas… Um relógio grande é uma cebola e uma confusão é uma salada. Viram como podemos ser vegetarianos de vez em quando?
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terça-feira, 21 de outubro de 2014

A casa de Anne Frank




“Viajámos num comboio comum de passageiros. (...) Anne não saía da janela. Lá fora era Verão. Pradarias, campos de restolhos, vilas voavam. Os fios telefónicos à direita, ao longo do caminho, dançando para cima e para baixo acompanhando as janelas. Era como se fôssemos livres.”
Lá fora era Verão e os Frank viajavam de comboio. O pai, Otto, o único sobrevivente da viagem – e do anexo – escreveu anos mais tarde sobre esse último sopro de liberdade. Ou para ser exacta, do que parecia ser um sopro de liberdade e era uma linha até à morte. Mas havia anos que Anne não via os campos, as vilas a voar e podia imaginar sentir a brisa na cara.
Vamos ao princípio da viagem. Numa manhã de Agosto igual às outras, quando os campos deviam estar de um amarelo intenso como nos quadros de Van Gogh – é assim que imaginamos a Holanda no Verão –, os oito habitantes do anexo da Prinsengracht 263 foram presos. Os Frank, os van Pels e Fritz Pfeffer.
Anne e a irmã Margot, a mãe Edith, o pai Otto são levados para o campo de concentração e extermínio Auschwitz-Birkenau. As duas meninas são depois levadas para Bergen-Belsen, onde morrem em Março de 1945, devido à falta de condições e de comida. Primeiro Margot, logo depois Anne. De tifo. A poucas semanas da libertação e do fim da guerra. Dois meses antes, em Janeiro de 45, Auschwitz já tinha sido libertada pelas tropas russas.
Só a 3 de Junho, no regresso a Amesterdão, e depois de um sinuoso périplo pela Ucrânia e França, Otto soube da morte das filhas (na viagem de regresso já lhe tinham contado da morte da mulher).
E agora?
O começo da viagem é outro, na verdade. De certa maneira começa no dia 8 de Julho de 1942, quando a família deixa a sua casa no centro de Amesterdão e de refugia num anexo secreto. Na entrada do diário de Anne Frank desse dia pode ler-se: “Parece que passaram anos desde domingo de manhã. Aconteceu tanta coisa que é como se, de repente, o mundo se tivesse voltado de pernas para o ar. Mas como podes ver, Kitty, ainda estou viva, e isso é o principal, diz o Papá”.
A primeira coisa que Anne enfiou num saco, quando os pais lhe anunciaram, a ela e à irmã, que iam “mergulhar” (expressão usada para designar a passagem à clandestinidade), foi o diário-amiga a quem chamou Kitty (“Quero que o diário seja como uma amiga, e vou chamar a essa amiga Kitty”). É por causa dele que hoje sabemos dela.
O diário tinha sido oferecido a Anne pouco antes, pelos seus treze anos. Tinha uma capa axadrezada em vermelho e branco e foi preenchido numa caligrafia regular, segura. Há páginas em que há fotografias de família, mas no essencial é texto, um bloco sólido de texto.
A primeira entrada é de 14 de Junho. Nessa e nas seguintes, a despeito de uma noção crua do contexto de guerra e de perseguição aos judeus, Anne é uma menina com os sonhos e o mundo de uma menina de 13 anos, despreocupada. Apresenta as suas colegas de escola, caracteriza-as, bem como os rapazes, anota disputas infantis. “J. é uma coscuvilheira detestável, dissimulada, presumida e hipócrita, que pensa que é muito crescida. Jacque está enfeitiçado por ela, o que é uma pena.”
Dir-se-ia um pedaço de mundo tranquilo. Apesar de um cerco cada vez mais apertado. Até à asfixia.
O nó começou a apertar em 1933, o ano da subida de Hitler ao poder. A família Frank emigra de Frankfurt para Amesterdão. Anne tinha quatro anos. Depois de 1940, uma série de decretos restringia “severamente” (advérbio de Anne) a vida de todos os dias. “Os judeus tinham de usar uma estrela amarela”, que hoje se vê, na casa. Os judeus estavam proibidos de andar de eléctrico, carro, bicicleta. Os judeus estavam proibidos de se sentar nos jardins, cinemas e teatros. Os judeus eram obrigados a fazer compras entre as três e as cinco e impedidos de andar na rua entre as oito da noite e as seis da manhã.
Na página quase completa em que explica tudo o que os judeus não podiam fazer, Anne começa todas as frases por “os judeus”. O que é sublinhado: tudo lhes estava vedado por serem judeus. A razão da discriminação era essa.
Os judeus eram proibidos de quase tudo. De certa maneira, estavam proibidos de existir, ainda que não estivessem completamente privados da liberdade.
Mas não era ainda o anexo.
Esse foi o quadro das suas vidas. Até não restar um sopro que possibilita a vida cá fora. O impulso derradeiro aconteceu quando a irmã de Anne, Margot, recebeu uma convocação das SS. Margot tinha 16 anos, mais três do que Anne. Representou o fim da linha de fuga.
Os pais de Anne, que preparavam a ida para um esconderijo havia alguns meses, aceleraram o processo. Só na manhã em que abandonaram a sua casa, e a deixaram como se tivessem saído à pressa, e rumaram em direcção ao esconderijo com camadas de roupas e tanto quanto puderam levar, ainda de madrugada, Anne soube que o esconderijo ficava no edifício onde o pai tinha a empresa. Não longe da sua geografia de sempre. Poucos dias tinham passado entre a convocatória das SS e o nova vida secreta.
Abro um parêntesis para explicar que nunca percebi o que era o anexo até estar no anexo. Quando li o Diário de Anne Frank tinha onze para doze anos e terminava o sexto ano. Imaginava o anexo como um espaço contíguo ao armazém, mas não conseguia visualizar o que Anne descrevia com algum pormenor no seu diário. Nem consegui compreender, obviamente, a que é que correspondia viver naquela clausura, sob aquela ameaça. Havia muitas coisas em que a vida de Anne se parecia com a minha. Atritos com a mãe ou a irmã, um apaixonado chamado Peter, o sino da igreja que se ouvia ao fundo. As pessoas cobiçosas ou pouco solidárias, que Anne conheceu nos van Pels e que eu encontrava em alguns adultos da minha vida. Os sonhos do que faria quando saísse dali/ quando crescesse.
Hoje parece-me absurdo estabelecer um qualquer paralelismo entre aquilo que Anne sentiu e descreveu e aquilo que eu senti. Mas ela era uma menina mais ou menos da minha idade que conseguia (o milagre, percebo-o hoje) de tactear a vida e de encontrar uma certa normalidade no mundo e na aberração em que vivia. Era com a normalidade que eu me identificava e com a linguagem silenciosa e salvadora que o diário representava. Foi com certeza por causa dela que tive um diário a quem chamei Kitty. Mas nunca me entreguei a ele como Anne, que escreveu no diário em jeito de epígrafe: “Espero poder confiar-te tudo, como nunca pude confiar em ninguém, e espero que venhas a ser uma grande fonte de conforto e apoio”.
Reli o livro vinte anos depois com a minha irmã mais nova. Mas estava sobretudo preocupada com o modo como uma menina de 13 anos compreenderia aquelas páginas.
E agora tenho 42 anos, estou em Amesterdão com a minha sobrinha e aflige-me não encontrar uma maneira de tornar compreensível para uma criança de dez anos a enormidade que ali se passou.
Antes mesmo de chegar à cidade comentei o assunto com os pais dela e perguntei-me qual seria a melhor abordagem. Não só para a preparar para a prostituição nas montras (que não se confina ao Red Light District), mas para a casa de Anne Frank. Sobretudo para a casa de Anne Frank. Isto sim, pornografia. De repente, postas as coisas em dois pratos de uma balança que nunca será a mesma balança, apercebi-me de que há coisas que não conseguimos organizar, que não cabem em nenhuma categoria, e que dizer que moralmente é repugnante, sub-humano, inumano, todas as formas de negação do humano, não chega. Talvez nenhuma palavra chegue. A palavra é do domínio do humano. O que se passou no Holocausto não tem palavra que o diga suficientemente. Faltam as palavras ao humano para explicar o que está para lá do humano.
Penso que uma das razões porque me impressionou tanto visitar a casa de Anne Frank foi o facto de a visitar com uma menina pouco mais nova do que Anne Frank. Ter dez anos não é mesmo que ter treze. Porém, a cara de Anne é a cara de uma menina pequena, com um gancho a segurar o cabelo, o olhar luminoso e crédulo. Como seria a cara de Anne depois de dois anos de anexo? Ver-se-ia a devastação? A amargura? Porque as fotografias que temos são anteriores e só nos dizem da menina. Entretanto, no anexo, apareceu-lhe o período, tornou-se mulherzinha. Substituiu imagens de artistas de cinema por reproduções de Miguel Ângelo ou Da Vinci na parede do quarto. E, sabe-se lá como, continuou a alimentar sonhos, a fazer planos para depois da guerra. Mais do que tudo: continuou a acreditar na bondade do homem.
Talvez a sua cara não tenha mudado tanto assim. Tanto além das mudanças que sempre ocorrem quando o mundo muda de lugar e somos adolescentes.
Estou com a minha sobrinha e os pais dela numa fila para entrar na casa de Anne Frank. Fomos quatro entre tantos, pacientes numa fila de horas. Tantos a querer compreender alguma coisa e, sobretudo, a prestar homenagem a Anne, e nela a milhões de judeus mortos na Segunda Guerra. E isso é talvez a única coisa que podemos explicar a uma criança de dez anos: estar ali é uma forma de recusar a discriminação e o horror, de honrar a memória, de não esquecer que uma coisa chamada Holocausto (“O que é Holocausto?) aconteceu quando os nossos pais e avós já eram vivos. Tão perto de nós.
A casa de Anne Frank fica virada para um canal, ao lado de uma igreja. Ali havia um castanheiro de que Anne gostava. Era uma das poucas manifestações de vida que podia ver a partir do anexo. A cidade levantou-se em 2007 quando o quiseram abater. A árvore estava doente, a reabilitação fez-se. Até que em 2010 se partiu, como se fosse um galho frágil e não uma árvore de 150 anos, depois de uma noite de chuva e vento.
A visita começa. Não damos logo com o anexo nem com o espírito daquela que escreveu em Março de 44: “Quando penso na minha vida em 1942, parece-me tudo muito irreal. A Anne Frank que gozava dessa existência divinal era completamente diferente daquela que ganhou experiência dentro destas paredes. Sim, era uma vida divinal. Cinco admiradores em cada esquina, vinte e tal amigos, a preferida da maioria dos professores, estragada de mimos pelo Papá e pela Mamã, sacos de doces e uma grande mesada. Que mais poderia alguém desejar?”.
A outra, aquela em que a experiência do anexo a transformou: “Estávamos todos de água na boca. Nós, que não comemos nada a não ser duas colheres de cereais quentes ao pequeno-almoço e estamos absolutamente esfomeados; nós, que não comemos outra coisa a não ser espinafres meio crus (por causa das vitaminas!) e batatas podres, dia após dia; Se Miep nos tivesse levado à festa, teríamos arrebatado tudo o que estivesse à vista, incluindo a mobília. Estávamos reunidos à volta dela como se nunca, em toda a nossa vida, tivéssemos ouvido falar de comida deliciosa ou pessoas elegantes! E somos nós as netas de um distinto milionário. O mundo é um lugar de doidos!”.
[Ao leitor: este último excerto não é reproduzido integralmente, a selecção e justaposição de frases é minha.]  
Antes mesmo de entrar no anexo, há frases de Anne escritas nas paredes. São uma forma de preparação. “Um dia esta guerra terrível terminará. Chegará à altura em que seremos novamente pessoas, e não apenas judeus!” “Sei o que quero, tenho um objectivo, tenho opiniões, uma religião e amor. Se pudesse ser apenas eu própria, estaria satisfeita. Sei que sou uma mulher, uma mulher com força interior e muita coragem.”
Passam micro-filmes contextualizadores. Há fotografias que nos sintonizam com a voz interior de Anne, a voz que conhecemos do diário. Aquele é o espaço de que ela fala. Aquela é a menina que escreveu o que lemos. E novamente excertos do diário.
Este sítio onde estamos, e que não é ainda o anexo, é o armazém e o escritório da Companhia Opekta, uma empresa de produtos usados no fabrico de compotas que pertencia ao pai de Anne. De entre as pessoas que trabalhavam na empresa, apenas quatro sabiam do esconderijo e prestavam apoio aos oito moradores (correndo por isso risco de vida, uma vez que o auxílio a judeus era proibido). Os seus nomes: Miep Gies-Santrouschitz, Jo Kleiman, Victor Kugler, Bep Voskuijl. Todos os outros desconheciam a existência do esconderijo, o que só era possível dada a estrutura irregular do edifício.
Como é que os habitantes da casa passaram os 761 dias em que viveram clandestinos? Uma boa parte do dia em silêncio, sem luz natural. A ler, estudar, conversar, ouvir a BBC e seguir o movimento das tropas, pensar no que fariam no fim da guerra, espreitar o céu no sótão (o único compartimento onde havia uma janela e era possível respirar ar fresco), fazer a vida de casa (limpar, cozinhar). A escrever (que seria de Anne sem o diário?) A não usar o autoclismo entre as oito e as nove horas da manhã (apenas um empregado estava a essa hora e seria suspeito ouvir o barulho da descarga). A andar com pés de lã até às seis da tarde (quando os empregados despegavam e se cantava liberdade no anexo). A não discutir, a quase não falar, até às seis da tarde. A não correr riscos.
À minha frente está a estante de livros que escondia a passagem secreta para o esconderijo. Uma estante banal, que se movia. E depois o espaço exíguo, tão pequeno e tão estreito, mesmo, onde oito pessoas viveram uma quase vida. O quarto que os pais de Anne partilhavam com a filha mais velha, a sala de estar e cozinha que se transformava em quarto de dormir dos van Pels, o quarto que Anne dividia com Fritz e um pequeno corredor transformado em quarto de dormir de Peter van Pels. Estes compartimentos em dois andares, escadas íngremes. E por fim o sótão, onde não podemos subir, e de onde Anne via o castanheiro a ganhar novas folhas na Primavera, um ano mais bonito do que no outro, anota ela.
Um dia foram traídos. “Favor fazer a gentileza de retirar duas pessoas (dois filhos) que se escondem...” Quem seria? Há várias teorias, nenhuma comprovada. Lá fora era Verão.
O espaço está vazio. Nem por isso impressiona menos. A decisão de não o remobilar foi de Otto Frank. “Durante a guerra tudo havia sido levado e eu queria que ficasse como estava.” Mas o pai de Anne concordou que se fizesse uma maqueta onde se reconstitui o espaço, com o mobiliário, os objectos de todos os dias, tapetes, papel de parede, a secretária onde a filha escrevia.
Miep foi ao anexo depois de as forças nazis deportarem os habitantes. Levou consigo os diários de Anne, que entregou ao pai no fim da guerra. Eram vários diários, na verdade. Vários cadernos e duas versões do diário.
Através do rádio, Anne tinha ouvido um ministro holandês no exílio apelar a que guardassem os seus diários e documentos pessoais como forma de documentar para as gerações futuras aquilo por que o povo holandês estava a passar. Este apelo despertou na menina o desejo de publicar o seu diário sob o título (já escolhido) O Anexo Secreto quando a guerra terminasse. Para isso copiou-o integralmente, reescrevendo partes, cortando passagens, melhorando e comentando. Esse é conhecido como o diário B. Mas aquele que comummente lemos no mundo inteiro é o diário C; ou seja, aquele que foi editado pelo pai de Anne Frank, omitindo aspectos mais íntimos da vida da filha e comentários menos abonatórios sobre algumas pessoas.
O contacto com o diário da filha foi lento, duro. “Não conseguia ler mais do que algumas páginas por dia. As lembranças eram muito dolorosas. Foi uma revelação! (...) Como podia saber o quanto significava para Anne a visão de uma nesga de céu azul, de um castanheiro ou de gaivotas a voar? (...) Não obstante, guardara para si todos estes sentimentos.”
Quase fim da visita. Na casa-museu vemos as páginas de Anne Frank, do diário, de contos que escreveu – ela queria ser escritora –, vemos um filme onde há contribuições de pessoas como Steven Spielberg ou Natalie Portman, contributos de pessoas menos conhecidas que alertam para o que pode ser apelidado de culto da personalidade e para a importância de integrar a história de Anne na história mais negra do século XX. Uma de seis milhões de judeus. Há também o contributo escrito de Nelson Mandela: “Alguns de nós leram o diário de Anne Frank em Robben Island, o que nos trouxe muito alento”.
O diário é um testemunho privado e um documento histórico. Foi assim que o Otto Frank o entendeu e por isso se decidiu pela publicação. Depois da História, a história privada: “Querida Kitty, sou tão idiota. Esqueci-me de que ainda não te tinha contado a história do meu único verdadeiro amor”.
Anabela Mota Ribeiro




quinta-feira, 6 de junho de 2013



CARTAS




Pierre Bonnard, The Letter.1906
- aqui











PEÇAS DE MUSEU

      Acabo de sofrer uma das maiores humilhações da minha vida. Ainda por cima aqui no meu bairro, as pessoas a olharem para mim com aquele sorriso de meia boca, género «coitadinha, não liguem».
Ia eu, muito pacificamente pela rua acima, deitar umas cartas no marco do correio, quando oiço estalar uma gargalhada a acompanhar o vozeirão do meu amigo Fernando que ali, em altos berros, para toda a gente ouvir, me reduzia à insignificância de ainda precisar de usar um objecto tão obsoleto e anacrónico (a expressão, obviamente, é dele). Olhei em roda à procura do tal objecto, que eu não descobria em parte nenhuma, mas ele não parava de falar e de rir, que há não sei quanto tempo não via uma pessoa servir-se daquilo, que se tivesse ali uma máquina fotográfica até registava o momento, se eu não sabia que havia uma coisa chamada computador e outra coisa chamada e-mail, e ria, e ria, e as pessoas passavam, olhavam, e riam com ele, e eu ali, finalmente a perceber que era do pobre marco do correio que ele falava.
Lembrei-me, então, de outra vez em que uma coisa semelhante se tinha passado comigo, embora não tão ostensivamente humilhante, coisa bem mais pacata e silenciosa. Estava eu nessa altura de férias no Luso, a tentar escrever alguma coisa à mesa do café. Faltou-me a tinta e rapo de um tinteiro pequeno que tinha acabado de comprar e, logo ali, encho a caneta. É então que uma das empregadas se especa à minha frente, mãos espalmadas na barriga, e murmura: «Jasus! Desde o tempo da minha escola primária que eu não via uma pessoa fazer isso!»
Pois é. Eu escrevo cartas. À mão. Com caneta. Com tinta. E – o que ainda torna tudo muito pior – gosto muito. E tenho muita pena que esse prazer se esteja a perder. Às vezes penso que o progresso e os avanços (tecnológicos e não só) estão a fazer desaparecer alguns dos grandes prazeres da nossa vida. Para já, a enorme loucura da pressa com que sempre andamos fez-nos perder o prazer de ter tempo para perder tempo.
Come-se em pé no balcão da esquina, e a correr, porque atrás de nós estão mais dois ou três à espera do lugar.
E o pão que comemos não sabe a pão, feito à pressão naquelas casas que substituíram as honradas padarias e se chamam «boutiques do pão».
E a maçã que comemos não sabe a maçã, feita em estufas, toda do mesmo tamanho e com aquele aspecto que até parece que saiu da história da Branca de Neve, e onde nenhum bicho entra, porque o bicho é esperto e nós não.
E depois há o telemóvel para resolvermos negócios enquanto estamos a atravessar o passeio, para não perdermos alguns minutos, e quando nos enfiamos no comboio nem sequer olhamos para a paisagem porque ligamos imediatamente o nosso PC portátil, e fazemos da carruagem a extensão do nosso escritório, perdendo todo o prazer da viagem.
E escrever cartas. O prazer de tocar no papel, de sentir o aparo deslizar, de saborear as palavras que se vão alinhando, o prazer de escrever cartas de amor ridículas, cartas de adeus desesperadas, cartas banais da pequena intriga familiar, cartas enormes como as que escrevíamos na nossa adolescência, quando os amigos nos faziam tanta falta e os dias eram desmesuradamente grandes.
E olho para as prateleiras da estante, com aqueles volumes de correspondência de escritores, que sabe tão bem ler, e penso que tudo isso vai acabar também, e as cartas, e os selos, e os bilhetes postais, e os marcos-de-correio-de-portinha-ao-centro, e as canetas e os tinteiros vão transformar-se muito rapidamente em peças de museu para mostrarmos aos netos dizendo «a avó ainda usou isto» e eles a olharem para nós e a não acreditar.

Alice Vieira, Pezinhos de Coentradas





UMA CARTA PARA LEONOR

De cada vez que pedia a morada a alguém lá vinha sempre a mesma estranheza: «Morada? e-mail, queres tu dizer» e ela a explicar que não, que era mesmo morada, rua, número de porta, andar, código postal, essas coisas, porque lá em casa não havia computador.

Olhavam-na com a mesma expressão de incredulidade com que a olhariam se tivesse admitido a falta de água canalizada e a consequente necessidade de recorrer ao poço mais próximo.

A neta, evidentemente, não escapava à regra. «Ó avó, escrever cartas? Que seca!», e lá se enfiava pelo sofá abaixo, enviando furiosos SMS ao mundo inteiro.

Por isso aquele pedido lhe parecera estranho. «Uma carta? Tu queres mesmo que eu te escreva uma carta?», e Leonor a dizer que sim, que queria mesmo, uma carta ou postal, tanto fazia.

Ela pensa que afinal nem tudo está perdido, que é sempre boa altura para levar alguém ao bom caminho, e o pedido de Leonor compensa-a um pouco daquela humilhação de há dias, quando a Teresa a viu deitar uma carta no marco do correio e desatou a rir no meio da rua, com as pessoas todas a olharem para ela, «Mas tu ainda usas disso? E não me digas que ainda escreves com pena de pato?!»

Com pena de pato evidentemente que não, mas com caneta, escolhida com muito cuidado, entre as suas canetas de que tanto se orgulhava e que desistira de um dia oferecer à neta. Mas podia ser que agora as coisas mudassem. «Uma carta ou um postal, avó, escreva-me quando não tiver nada que fazer.»

Lembra-se do tempo em que o filho era pequeno e das recomendações que lhe fazia quando ele ia de férias com os amigos: «depois escreve!». E ele depois escrevia. Nem sempre grandes cartas («Mãe: não tenho nada para dizer. Beijos», escreveu ele uma vez numa carta que traz sempre consigo), mas escrevia. Guardou as cartas todas – dos namorados, do marido, do filho, dos amigos – e não sabe como teria sido capaz de sobreviver sem elas.

Quando o filho, nessa tarde, entrou em casa, como tantas vezes fazia quando saía do escritório, encontrou-a atarefada a escolher a caneta com o aparo mais macio, as cargas de tinta preta («escreve-se sempre com tinta preta», ensinara-lhe o pai), toda a parafernália necessária, como se, de repente, fosse começar uma profissão nova.

«Ó Mãe», riu-se ele, «não esteja com tantas preocupações! Para o que eu penso que a Leonor quer, qualquer coisa serve!» Ela olhou-o meio zangada, estes pais agora não têm tempo para os filhos, para falarem com eles, para os conhecerem, e depois queixam-se. Mas o filho continuava a rir: «Sabe que ela pediu a toda a gente que lhe escrevesse? A Isabel também achou estranho, mas eu é que topei logo o esquema!» Outra gargalhada, que por momentos lhe pareceu as da Teresa diante do marco do correio. «Se a mãe visse o novo carteiro lá da rua, percebia logo! sabe como eles são agora, novos, bem penteados e bem falantes, e o nosso tem feito um sucesso lá no bairro. A Leonor até parece parva quando olha para ele… Está a perceber porque é que ela quer que lhe escrevam, está?» E o filho ria, como em criança. Deu-lhe um beijo a correr e saiu porta fora.

E ela ficou parada no meio da sala, com vontade de escrever uma carta ao carteiro agradecendo-lhe a ajuda na conversão da Leonor ao bom caminho. Afinal, uma carta ainda servia para alguma coisa. Havia de o contar à Teresa quando a encontrasse.

Alice Vieira, Pezinhos de Coentradas


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Imagem: aqui





7.4.1971

Meu amor querido

Adoro-te minha gata de Janeiro meu amor minha gazela meu miosótis minha estrela aldebaran minha amante minha Via Láctea minha filha minha mãe minha esposa minha margarida meu gerânio minha princesa aristocrática minha preta minha branca minha chinezinha minha Pauline Bonaparte minha história de fadas minha Ariana minha heroína de Racine minha ternura meu gosto de luar meu Paris minha fita de cor meu vício secreto minha torre de andorinhas três horas da manhã minha melancolia minha polpa de fruto meu diamante meu sol meu copo de água minhas escadinhas da Saudade minha morfina ópio cocaína minha ferida aberta minha extensão polar minha floresta meu fogo minha única alegria minha América e meu Brasil minha vela acesa minha candeia minha casa meu lugar habitável minha mesa posta minha toalha de linho minha cobra minha figura de andor meu anjo de Boticelli meu mar meu feriado meu domingo de Ramos meu Setembro de vindimas meu moinho no monte meu vento norte meu sábado à noite meu diário minha história de quadradinhos meu recife de Manuel Bandeira minha Pasargada meu templo grego minha colina meu verso de Höderlin meu gerânio meus olhos grandes de noite minha linda boca macia dupla como uma concha fechada meus seios suaves e carnudos meu enxuto ventre liso minhas pernas nervosas minhas unhas polidas meu longo pescoço vivo e ágil minhas palavras segredadas meu vaso etrusco minha sala de castelo espelhada meu jardim minha excitação de risos minha doce forquilha de coxas minha eterna adolescente minha pedra brunida meu pássaro no mais alto ramo da tarde meu voo de asas minha ânfora meu pão de ló minha estrada minha praia de Agosto minha luz caiada meu muro meu soluço de fonte meu lago minha Penélope meu jovem rio selvagem meu crepúsculo minha aurora entre ruínas minha Grécia minha maré cheia minha muralha contra as ondas meu véu de noiva minha cintura meu pequenino queixo zangado minha transparência de tules minha taça de oiro minha Ofélia meu lírio meu perfume de terra meu corpo gémeo meu navio de partir minha cidade meus dentes ferozmente brancos minhas mãos sombrias minha torre de Belém meu Nilo meu Ganges meu templo hindu minha areia entre os dedos minha aurora minha harpa meu arbusto de sons meu país minha ilha minha porta para o mar meu manjerico meu cravo de papel minha Madragoa minha morte de amor minha Ana Karénine minha lâmpada de Aladino minha mulher.

António

in D'este Viver Aqui Neste Papel Descripto - Cartas da Guerra

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Chiúme, 20,11.71

Meu querido amor

Sábado, e sem notícias. O melhor é desesperar de esperar. Mas o que também me custa é pensar que as minhas cartas para aí terão um atraso muito grande. Confio que não estejas preocupada.
Começam febris idas e vindas: para a semana, suponho que de hoje a oito dias, começa a tal operação de que te falei, flechas, paras, o diabo. Só quero que me não arranjem muitas chatices e não me roubem muito tempo, de que preciso para a história.
Agora, com as chuvas, não calculas a quantidade de insetos que andam por toda a parte, rastejando, pulando, marchando, voando. Louva-a-Deus enormes, feitas de arame, com quase um palmo de comprimento, borboletas noturnas de todos os tipos, algumas gordas e verdes, absolutamente repelentes, formigas de asas, mosquitos, pequeninos bichos sem classificação com uma irresistível tendência para se nos meterem nos buracos do nariz, estranhas aranhas voadoras, sei lá. As lagartixas e lagartas que abundam pelas paredes, mesmo nas dos quartos, andam completamente loucas com a súbita variedade do menti. Isto é uma terra de excessos de toda a ordem. Nada tem medida nem contenção: um bocado como a minha louca prosa, em que se cosem feridas com tiras de solda.
Já perdi entretanto as esperanças de falar para a televisão no Natal do soldado, e de dizer adeus até ao meu regresso: os tipos não se atrevem a vir tão longe, o que eu compreendo muito bem... E tudo continua no ramerrame do costume, que os acidentes brutais interrompem de quando em quando. Mas até isso, com o tempo, deixa de ser surpresa ou indignação: aceita-se com o fatalismo que aqui se aprende, feito de muita angústia e de muito sofrimento banalizados e tornados quotidianos e familiares. Pode-se viver em plena paz com o medo e o horror e suportá-los ambos sem dificuldades de maior. É uma questão de nos tornarmos de pedra.
Como está a bonita e adorada e querida filha do meu coração? Amanhã faz 5 meses. Deve estar uma esbelta senhora, cheia de pretendentes expeditivos. Quando eu voltar ponho toda essa malta na ordem, a coice.
E tu, meu amor? Como estás tu? Saudades minhas? Gosto sempre tudo tudo tudo de ti. És tão bonita! A falta que tu me fazes! Quando quando quando? Milhões de beijos e todo o amor do mundo.
António

António Lobo Antunes, D'este viver aqui neste papel descripto. Cartas da guerra

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 Carta a um namorado do futuro

Queria muito ter-lhe escrito para lhe dar pelo menos uma explicação, mas (eu não paro se começo com "mas") estou sitiada física e psicologicamente desde princípios de Maio.
Resumindo, digo-lhe que este papel de carta, este envelope e a caneta (infelizmente preta) me foram gentilmente trazidos pela enfermeira Sandra, que é muito simpática e costuma fazer o turno das vinte e quatro horas. São agora perto das duas da manhã e eu não durmo porque a enfermaria está cheia de senhoras com mais quarenta e cinco anos do que eu, ligadas a tubos, soro, máquinas de oxigénio que produzem um ruidinho contínuo e irritante. Logo, eu não durmo.
Queria contar-lhe tudo - tudo inclui o que me está a acontecer, o que sinto e o que penso […] mas impede-me o receio de me tornar uma vulgar doente de hospital.
Ontem, enquanto gravava uma cassete com música, deixei-me vaguear pelo quarto - conhece aquelas bailarinas em plástico dentro de caixinhas de música? - dentro de um pijama branco bordado com pequenas borboletas azuis. Não lhe posso chamar dançar porque não sei dançar. Abano-me ligeiramente, melancolicamente, ao ritmo da música e mesmo isso nem sempre. Porque há vezes em que a música não me faz vaguear, nem abanar, nem rebolar dentro do pijama branco bordado de azul. Faz-me ficar quieta, sozinha, a ouvir. É o melhor de tudo. Era só uma cassete para eu ouvir no carro, naquelas alturas em que viramos uma esquina e a XFM desaparece e começamos a pensar se será, desta vez, para sempre. Depois de ter acabado de gravar a cassete, achei que lha devia mandar. Nós também somos a música que ouvimos. Portanto, ao ouvir a minha música, vai ficar um bocadinho, durante um bocadinho como eu. [...]
As coisas de que eu mais gosto são as flores do campo, o mar, os rios e toda a água corrente, fria ou quente. Laranjas, limões, limas e tudo o que faz mal ao fígado. Apanhar vento na cara. Dar de comer aos patos no parque da cidade. Ficar horas deitada na relva a ver o céu. Cozinhar para os outros. Tratar dos vasos e das plantas do jardim. Dormir com o meu gato preto. Ajudar o meu pai nas vindimas, fazer o vinho e levar o brolho para o alambique. Ver o bagaço a cair em fio e sentir aquele cheiro forte e quente.
Desculpe tanto desabafo. E não é metade do que sinto. Obrigada.

Pedro Paixão, Nos Teus Braços Morreríamos

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CARTAS DE AMOR

Neste tempo de sms, likes, emoticons, haverá ainda quem, com pena e papel, se sente a escrever cartas de amor? 
Creio que o simples imaginar da cena causa hilaridade, para não falarmos do perigo que acarreta expor em frases que ficam – scripta manent – emoções e sentimentos que, exaltados por natureza, contêm o risco clássico do feitiço que se volta contra o feiticeiro.
Numa ou noutra altura, em estado febril, provavelmente quase todos nós, maiores de cinquenta anos, cometemos o erro de caligrafar em papel acessos de paixão, o mesmo é dizer que nesta e naquela gaveta, ou entre páginas de sonetos, se escondem umas quantas bombas de relógio. Não das que explodem em estilhaços e causam mortes, mas das que, como as do gás de mostarda,  discretamente espalham o seu veneno.
Imaginem-na, a esquecida namorada, irreconhecível, tão diferente da jovem que foi, e agora, num gesto de teatro, espalha sobre a mesa do café umas quantas folhas, em que não só reconhecemos a nossa letra, mas, bem pior, nos levam a recordar em detalhe quanto nos esforçámos, buscando-as no dicionário, por  encontrar palavras que, como um vidro de aumento, engrossassem a paixão.

J. Rentes de Carvalho



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Correspondência

Vejo as nuvens que avançam do Atlântico
para o continente. E, por trás delas, como um pastor
exigente, o vento que as empurra. Depois,
as nuvens passam e volta o sol, com o azul
imutável das manhãs de outono, monótono e distante
como quem o olha, ao sair de casa, sem
tempo para pensar no tempo.

As nuvens, no entanto, continuam
o seu caminho: umas, desfazem-se em água
sobre campos vazios, ou descem para as grandes
cidades para as abraçar com um tédio
enevoado. As que me interessam, porém,
são as que sobem para norte, e ficam
mais frias à medida que as pressões continentais
abrandam o seu curso. Então, param
em dias cinzentos; e, por fim, escurecem
a tua alma, quando as olhas, e te apercebes
de que se aproxima um inverno
de solidão.

A não ser que leias, nesse obscuro céu,
esta carta que te mando.

Nuno Júdice, O Movimento do Mundo




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CARTA

Bem quisera escrevê-la
com palavras sabidas,
as mesmas, triviais,
embora estremecessem
a um toque de paixão.
Perfurando os obscuros
canais de argila e sombra,
ela iria contando
que vou bem, e amo sempre
e amo cada vez mais
a essa minha maneira
torcida e reticente,
e espero uma resposta,
mas que não tarde; e peço
um objeto minúsculo
só para dar prazer
a quem pode ofertá-lo;
diria ela do tempo
que faz do nosso lado
as chuvas já secaram,
as crianças estudam,
uma última invenção
(inda não é perfeita)
faz ler nos corações,
mas todos esperamos
rever-nos bem depressa.
Muito depressa, não.
Vai-se tornando tempo
estranhamente longo
à medida que encurta.
O que ontem disparava,
desbordado alazão,
hoje se paralisa
em esfinge de mármore,
e até o sono, o sono
que era grato e era absurdo
é um dormir acordado
numa planície grave.
Rápido é o sonho, apenas,
que se vai, de mandar
notícias amorosas
quando não há amor
a dar ou receber;
quando só há lembrança
ainda menos, pó,
menos ainda, nada,
nada de nada em tudo,
em mim mais do que em tudo,
e não vale acordar
quem acaso repousa
na colina sem árvores.
Contudo, esta é uma carta.

Carlos Drummond de Andrade, Antologia Poética



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Jeanie Liehe. The Read Letter
- aqui



carta para A.

viste que os dias não passavam
disto, e viste bem. desse lado
do céu, tens o melhor miradouro
sobre a madrugada. se encontrares
o pintainho que sepultámos,
em segredo e lágrimas, no
quintal das tias, pede-lhe o
arco da sua asa nas noites de lua nova.
remete-me, quando puderes,
pacotes de chuva miúda, gosto
de a ver decalcar a terra, fundir-se
com as sementes de milho
no canto da achadinha.

entretanto, vou montando o
telescópio, com as instruções
que me deste. põe-te à vista
e combinamos um gelado a
meio caminho,
à hora da infância.

Renata Correia Botelho,  Avulsos por causa, 2010




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CARTA DA INFÂNCIA


      Amigo Luar:


      Estou fechado no quarto escuro
      e tenho chorado muito.
      Quando choro lá fora
      ainda posso ver as lágrimas caírem na palma das minhas mãos
                e brincar com elas ao orvalho nas flores pela manhã.
      Mas aqui é tudo por demais escuro
      e eu nem sequer tenho duas estrelas nos meus olhos.
      Lembro-me das noites em que me fazem deitar tão cedo e te
                oiço bater, chamar e bater, na fresta da minha janela.
      Pelo muito que te tenho perdido enquanto durmo
      vem agora,
      no bico dos pés
      para que eles te não sintam lá dentro,
      brincar comigo aos presos no segredo
      quando se abre a porta de ferro e a luz diz:
      bons dias, amigo.


          Carlos de Oliveira, Trabalho Poético





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CARTAS DO PERÚ DO OLIVAIS


I

Adorada perua:
Há dias que, diante do patrão,
ando de rua em rua
não sei por que razão.
Como tu viste, o homem resolveu
fazermos em Lisboa a consoada,
para me divertir, suponho eu.
Porém, se adivinhasse esta estopada,
tinha-lhe dito logo que não vinha,
tanto mais, tanto mais, não vindo tu,
minha peruazinha,
por quem morre de amor o teu perú.
É para ver a terra? Não percebo,
pois mal ergo a cabeça para o ar
trabalha logo a cana do mancebo
e continuo a andar, a andar, a andar...
Às vezes lá paramos, mas estranho
também estas paragens,
porque me agarram certas personagens,
tomam-me o peso, notam-me o tamanho
e até (Deus me perdoe se ouço mal!)
discutem o valor,
como se eu fosse, amor,
uma coisa venal!
Adeus. Com isto não te enfado mais.
Havendo novidades
escrevo. Mil saudades
e beijos do

Perú dos Olivais

II

Meu anjo... Escrevo agora na cozinha
duma senhora muito delicada,
que me tem dado esplêndida papinha
assim como a criada.
Há pouco ainda (ora imagina, filha!)
deram-me até um copo de Bucelas
que me adoçou muitíssimo as goelas
e é uma verdadeira maravilha,
mas Deus queira, Deus queira
como só bebo água lá em casa,
que não me faça mal à mioleira
e que eu não fique com um grão na asa.
Amanhã te direi o que é passado.
Recebe mil bicadas cordiais
do teu apaixonado

Perú dos Olivais

III

Querida. Água a ferver... Uma panela
ao pé dum alguidar... tenho receio...
Fala-se em cabidela
e em perú de recheio...
Afia-se uma faca... Ó céus! Que horror!
O monco já me cai... Nunca supus...
Que é isto meu amor?
Ai Jesus! Ai Jesus!
Já tenho as pernas presas...
Tolda-se a vista... Engasgo-me... Agonizo...
Tremem-me as miudezas...
Turva-se-me o juízo...
Adeus: Recebe o último glu-glu
e os corais
do in... fe... liz
Pe... rú... dos O... li...vais

Acácio de Paiva — Poemas 




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PARA O MEU AMOR
por Fernando Alvim


Meu amor, escrevo-te como te havia prometido para dizer no fundo o que já sabes: que gosto de ti. E não é de agora. Eu gosto de ti desde os tempos do antigamente em que as mulheres usavam sombrinhas na rua, para que o sol não as incomodasse. Eu gosto de ti desde aí meu amor, e sei bem que nunca o terás notado, porque quando te aproximas todo eu estremeço, como quando o vizinho de cima fecha a porta de casa com muita força e todo o prédio ouve. Meu amor, tu não precisas de qualquer porta para te fazeres notar, porque a tua simples passagem, a tua presença, é superior a mil portas a fecharem-se com estrondo.
Meu amor, eu queria ter-te sempre ao pé de mim e ensinar-te palavras em português que eu sei que terás sempre dificuldade em dizer. Por exemplo: amo-te. As pessoas têm muita dificuldade em dizer isto em Portugal mas eu vou-te ensinar a dizê-lo na perfeição. De tal modo, que quero que olhes para mim e o digas todos os dias. Até ser perfeito. Até saber tão bem como sabem os bons-dias quando ditos com vontade. A grande maioria das pessoas quando diz os bons-dias não o deseja de verdade. Deseja-se um bom dia como poderia perguntar-se se tem rebuçados para a tosse. E com o amo-te por vezes também é assim. As pessoas acham giro porque ouvem nas telenovelas a dizerem-no com tal destreza, que pensam que na vida real também é assim, que quando o dizemos também se ouve uma música de fundo que sobe à medida que nos beijamos.
E agora que penso nisto, pergunto: Como se dirá amo-te em finlandês? Como se dirá amo-te na Finlândia? Porque é que só aí existem saunas mistas? Gostava tanto que me ensinasses coisas sobre a Finlândia que até podíamos fazer uma espécie de acordo. Eu ensino-te a dizer amo-te em português e tu em finlandês. E, em nossa casa, eu só falo em finlandês com os miúdos e tu em português. E é nesta universalidade que celebraremos o nosso amor, hoje Helsínquia, amanhã Lisboa, aqui Cavaco Silva, ali Tarja Halonen, na Finlândia os Him, aqui os Delfins, em Suomi 5 milhões, em Portugal 10.
Mas não seremos mais dois, meu amor. Seremos 5, seremos 10 milhões, seremos Portugal e Finlândia, o mundo inteiro se quiseres, desde que saibamos dizer amo-te na minha, na tua língua, em todas as línguas, como se de cada vez que o fizéssemos, fosse tal a intensidade, que o mundo inteiro nos celebrasse. E o mundo, é esse que vês daí meu amor. Está inteirinho, à nossa espera.

Este conto faz parte do número 33 da Revista 365, e foi ilustrado por Alex Gozblau.



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In Práticas de escrita, Lisboa Editora


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Fernandinho meu, e hoje muito bonito

Venho escrever-lhe, e por acaso à hora que me costuma telefonar (8h) porque como talvez saia com a minha irmã, depois do jantar, ficaria amanhã sem carta minha, se o não fizesse agora.
O meu amor, dispôs-me lindamente para todo o dia com a sua carta, e para completar, telefonou-me duas vezes, que me deixou ficar radiante.
Então o meu queridinho estava triste, estava? tinha razão, fechado numa gaveta, coitadinho!... Quem foi o patife que lá o meteu? Deve ter sido o Sr. Engenheiro, com certeza. Quantos socos já terá apanhado a esta hora? Quem me dera ser 'Mimi'... Dava-lhe muitos socos, mas por cada soco cinquenta jinhos... Quia? Dos tais, como o líquido que há no Abel. Depois do meu amor ter essa bebida à sua disposição já não vai mais ao Abel, pois não?
Vieram agora mesmo chamar-me para jantar, até já, é servido? Quem me dera tê-lo ao meu lado a jantar! Eu servia-o, queria?
Pronto, já papei, e papei bem porque estou contente, o meu amor com certeza tamem já papou. Quando papa comigo? Isto já parece qualquer coisa que que eu li há tempo, creio que do Santa Rita; o Preto papão que papava a papinha, qualquer coisa neste género que achei graça. (Ou o Papim, qualquer coisa que me não lembra agora).
Fica para sábado o nosso encontro, conforme combinámos pelo telefone, às 5 1/4, se convier ao meu Fernandinho, sim? Se puder, telefona-me?
Então o meu feio pergunta-me na sua carta se gosto de si exactamente? Gosto exactamente, gosto exactamente muito; gosto exactamente muitíssimo! O Fernadinho gosta de mim exactamente menos. Chama-me feia, vespa e muitas coisas feias, já vê que não gosta tanto de mim, que só chamo coisas menitas.
O Fernandinho ainda se lembra como eu sou, como é a minha cara? Há tantos dias que me não vê...
Tá melhorzinho da doidice?! Mas eu gostava de tê-lo assim doido, como o indica a sua cartinha de hoje, e prezo-me de não ter nada mau gosto, porque eu sou uma rapariga de bom gosto.
Adeus querido amor, bonequinho meu, para eu brincar visto ser bebé. Até sábado, Tiozinho!

Uma noite muito feliz lhe deseja a muito sua

Íbis

3-10-1929
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Terrível Bebé;

Gosto das suas cartas, que são meiguinhas, e também gosto de si, que é meiguinha também. E é bombom, e é vespa, e é mel, que é das abelhas e não das vespas, e tudo está certo, e o Bebé deve escrever-me sempre, mesmo que eu não escreva, que é sempre, e eu estou triste, e sou maluco, e ninguém gosta de mim, e também porque é que havia de gostar, e isso mesmo, e torna tudo ao princípio, e parece-me que ainda lhe telefono hoje, e gostava de lhe dar um beijo na boca, com exactidão e gulodice e comer-lhe a boca e comer os beijinhos que tivesse lá escondidos e encostar-me ao seu ombro e escorregar para a ternura dos pombinhos, e pedir-lhe desculpa, e a desculpa ser a fingir, e tornar muitas vezes, e ponto final até recomeçar, e porque é que a Ofelinha gosta de um meliante e de um cevado e de um javardo e de um indivíduo com ventas de contador de gás e expressão geral de não estar ali mas na pia da casa ao lado, e exactamente, e enfim, e vou acabar porque estou doido, e estive sempre, e é de nascença, que é como quem diz desde que nasci, e eu gostava que a Bebé fosse uma boneca minha, e eu fazia como uma criança, despia-a, e o papel acaba aqui mesmo, e isto parece impossível ser escrito por um ente humano, mas é escrito por mim

Fernando  

9-10-1929



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Eduardo Lourenço: Amor e Literatura
A correspondência amorosa entre Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz é o tema deste texto de Eduardo Lourenço, publicado no JL 1112, de 15 de maio de 2013

Para os admiradores incondicionais de Pessoa, a leitura da sua correspondência com a predestinada jovem com o nome fatídico de Ofélia não é um texto como qualquer outro de Pessoa. Podemos imaginar que na sua perspetiva este episódio único do poeta da "Tabacaria" como pastor amoroso era, ou foi, tão ficcional como todos os outros que subscreveu com o seu nome ou com o dos famosos heterónimos.
A esta última comédia que lhe conferiu uma aura universal designou-a ele como "drama em gente". Mais sofisticado labirinto literário não se conhece. Há mais do que a sombra dele, ao menos do seu lado, nas cartas que trocou com Ofélia, vítima propiciatória da alma múltipla apostada em imitar Deus e ser como ele "tudo de todas as maneiras".
Só que Ofélia não era um seu heterónimo mas uma jovem burguesa de Lisboa dos anos 20, que talvez nunca tenha imaginado que chamou a atenção de Pessoa por ter aquele nome mítico como destino.
E destino lhe foi. Para Pessoa foi antidestino de que só ele conheceu os emaranhados e tenebrosos fios. Tanto mais emaranhados que, logo que se apercebeu que aquele enredo era real e nenhuma ficção o podia desatar sem remorso e culpa, convoca a sua criatura diabólica Álvaro de Campos para se desfazer de um laço que ele próprio criara para ter a ilusão, solitário absoluto, de que podia ter companhia.
 Assim introduz no seu jogo de sedução impura a parte tenebrosa de si, o mau da fita, Álvaro de Campos. Jogo de sedução que lembra um pouco o de Kierkegaard, se Ofélia pudesse acompanhá-lo nesse jogo, como Regina Olsen o fizera, por ter luzes e a determinação que a cândida e amorosa heroína shakespeariana à força, muito lusitanamente, não possuía. Em vez disso possuía um coração simples, intuitivo e vulnerável, naturalmente amante, sabendo amar como "o amor ama", como também sabia, mas só como virtualidade, o imortal autor da "Ode à Noite".
 Comédia de enganos, anverso de todo o fascínio amoroso? Da sua parte sim e, todavia, não era uma comédia cínica de libertino na alma, apenas a de alguém tão íntimo da noite universal e tão desesperado como raros da linhagem dos danados da terra e abandonados de Deus. No seu caso, consciente disso como todos os filhos de Nietzsche e de Rimbaud, apostados em reinventar "outro sentido" para glorificar uma existência sem ele.
 Alguém imagina possível um diálogo, um encontro viável, entre um émulo de Lautréamont e uma jovem burguesinha, no limiar de uma época emancipadora, mas para quem só o casamento canónico era sinónimo de sucesso e felicidade? Da sua "cultura", no sentido habitual, não há nas suas cartas de amorosa transida e cedo dececionada senão os traços de classe dessa época e pouco mais. Já nesse plano é difícil imaginar uma dissimetria mais funda. Um pouco mais velho, o primeiro reflexo de Pessoa é "infantilizar" o objeto do seu "juvenil" e tardio entusiasmo. Mas talvez o que mais surpreenda para quem conhece tão bem as reticências eróticas do autor do Fausto ("O amor causa-me horror, é abandono/ Intimidade...") ou as suas pulsões pouco canónicas (Antinoos) seja, sob a pluma real do autor de Mensagem, a assunção de um Desejo, se não com maiúscula platónica, pelo menos na sua versão comum, provocado pela Vénus urânia que Ofélia parece ter sido para tão visível esfomeado de amor e companhia.
 Este ostensivo erotismo, embora brincado e mesmo adolescentemente brincalhão (eterno regresso da alma e do corpo à infância de onde emergiu?), surpreendeu e continua a surpreender, menos pela sua óbvia assunção que pelo contraste com a mitologia do Desamor que foi para o poeta a única musa e música a que votou a sua demoníaca (e diviníssima) adoração. O que no espaço da pura virtualidade, que é por essência o da Poesia (de todas e não só a dele, Eróstrato de si mesmo), se celebra e se esconde ao mesmo tempo ("Meu ser vive na Noite e no Desejo.

/ Minha alma é uma lembrança que há em mim") é, quanto muito, misticismo amoroso em torno do "esplendor nenhum da vida".
 Nessas cartas inimagináveis para quem já era o poeta da "Ode Marítima" ou do oitavo poema do "Guardador de Rebanhos", onde a sua "verdade" erótica se exprime em litanias infantis, cheias de "inhos e beijinhos". Mimetismo sacrificial da ternura autêntica vivida à sua altura pela tão pouco celeste mas comovente e desencantada Ofélia, mais destinada a heroína antiga como Efigénia que a vítima sarcástica de um super Hamlet redivivo? Este abismo (escrito) entre a expressão amorosa de Ofélia, vampirizante como todas, e o vampirismo de segundo grau que é o de Pessoa, desta vez nu e sem máscara, na medida em que o podemos conceber como oposto do que desde a infância o elegeu diferente, Narciso cego perdido na sua Noite como essência do mundo e nós nele, surpreendeu e escandalizou aqueles que mais precocemente se viram confrontados com aquilo que o seu biógrafomo, João Gaspar Simões, designou de "enigma de Eros". E que aqui, na correspondência, em vez de solução, conhece uma espécie de metamorfose sem redenção. Para ambos os protagonistas, mas de diversa e oposta versão.
 No plano do banal fait-divers tratou-se de um encontro/desencontro entre dois seres predestinados para nunca se encontrarem e, uma vez encontrados, cada um deles vivendo, um na plena e redentora ilusão de se saber amado - miticamente "para sempre" -, e outro num mundo alheio, insuspeitado da ingénua Ofélia, tão perspicaz na ordem do coração como a Maria do Fausto mas, como ela, votada à desilusão por quem há muito - quase desde a infância - se via e via a vida -a sua e a da Humanidade inteira - como pura e incontornável Ilusão.

Se Ofélia tivesse lido o menor dos poemas do seu efémero e improvável "namorado" (epíteto que apenas concebido lhe seria insuportável), onde nada se glosa senão a evidência de que a Vida é pura Ficção e a chamada Ficção a única e impensável "verdade" dela, não teria embarcado nessa travessia do coração para um porto que nunca existiu para o companheiro/fantasma dessa viagem sem viajante dentro. A pobre (a rica) Ofélia tinha razão quando o seu estranho colega de escritório vinha ao seu encontro com o seu duplo infernal Álvaro de Campos. O coração não a enganava, que o coração só engana quem o não escuta. Essa comédia -versão lisboeta do famoso Dr. Jekyll e Mr. Hyde - nada tinha de cómico. Se o tivesse conhecido a sério (lendo-o menos distraída) teria sabido a tempo que o espetral Álvaro de Campos era a encarnação mesma da "paixão do fracasso", a que Robert Bréchon se refere com pertinência. E nunca ninguém epitetou melhor o génio de espécie nova que escreveu "Tabacaria". Que provavelmente Ofélia nunca leu.
 Em parte alguma Fernando Pessoa está mais ausente de si mesmo, dos outros e do mundo que nestas cartas que têm como palco a espetral cidade de Lisboa, tão viva por fora e tão irreal por dentro com o Poeta jogando o mais sério dos jogos como se fosse o extraterrestre de si mesmo. Todos os leitores conhecem, por ele no-lo ter imposto, o seu mundo de irrealidade sonhada onde desde cedo se refugiou para suportar a insuportável e incógnita realidade do que chamamos Vida.
 Mas nunca, como nestas "fingidas" cartas de amor sem fingimento que as resgate por dentro (quer dizer da poesia mesma que tudo redime, mesmo o que não pode ser redimido), no-lo tornam tão estranho de uma estranheza muito diferente da que o tornou único no espaço do nosso imaginário ocidental e não só.
 Bem sabemos que num celebérrimo poema brincado, Pessoa, como quem antecipadamente se absolve, glosou o tema do fatal ridículo que seriam as cartas de amor em geral, escritas apenas para o segredo e leitura de quem as escreveu.
 E é verdade que à parte as famosas cartas de Mariana Alcoforado, celebradas por Stendhal e que não serão nossas, a nossa epistolografia amorosa conhecida (mal conhecida) não goza de uma reputação muito gloriosa, salvo a que releva de textos em si ficcionais como os do sublime Bernardim ou dos postos por Camilo na boca póstuma da heroína de Amor de Perdição. E, contudo, autênticas e soberbas cartas de amor nossas nada têm de ridículo ou não vivem apenas da paixão sem frases que as elevam acima de si mesmas.

 Exemplo insuperável entre nós, as de Garrett a Rosa Montufar, andaluza ardente e refinada.
 A deceção (relativa) que todos nós, admiradores quase acríticos de quem escreveu o Livro do Desassossego -monumento sem par à tristeza infinita de não saber ou poder amar -, só nos vem, lendo estas cartas -referimo-nos às de Pessoa, que as de Ofélia de tão cândidas e sentidas não desiludem senão pelo excesso de idolatria sem eco à altura dela -por não reconhecermos nelas aquele fulgor inteligente que distinguiu Pessoa e que aqui brilha menos como eco ou reflexo de um amor ou uma ternura que o submergiu ao menos em certos momentos que por uma espécie de "frieza", ou reticência afetiva, que desde o início se manifesta, como se o demónio da dúvida ou a sua hiperconsciência de si e de tudo cavassem um abismo impossível de atravessar entre ele e o outro.
 Robert Bréchon, ecoando David Mourão-Ferreira, sublinhou como convinha e na companhia de outros exegetas de Pessoa, de Ángel Crespo a Leyla Perrone-Moisés, "a impressão estranha" que esta correspondência, destinada a interessar meio mundo por ser de quem é, quase sempre provocou. À parte o contributo nada desprezível que ela representa como uma espécie de diário obcecado e obcecante da vida real do famoso empregado de comércio de Lisboa e da vida lisboeta em pano de fundo, o sentimento de estranheza (de ordem estética, sobretudo?) mantém-se.
 São raras as peripécias desse famoso encontro-desencontro, no plano sempre terrífico do único sentimento onde num segundo se joga o destino de uma vida, que nos transportam como o menor verso do Poeta.
 Mais significativos, mas não inéditos, são os reflexos de uma certa crueldade sem sujeito que em várias passagens transfiguram essa tão banal (por fora) aventura humana em campo de batalha onde só reina um silêncio pior que a morte. Contudo nós não temos um testemunho mais direto da vivência quotidiana do autor de "Ode Marítima" que este combate íntimo com outro ser que o amou sem Literatura. E sem querer reenvia para a única paixão que assolou Pessoa como vocação e destino, a ponto de lhe sacrificar o que cada um de nós chama "felicidade humana", o monstro sublime da nossa imaginação que nós chamamos Literatura.