sábado, 13 de abril de 2013


Conto


Corpos incompletos

Restaurada de fresco, a estátua do marechal Saldanha, na praça do mesmo nome, começou logo a sentir melhorias de vista. Distinguia pormenores muito afastados e considerou que tinha valido a pena aquela maçada de tapumes, andaimes, lixívias, abrasivos, químicos fedorentos. Um arrumador de automóveis recolhia uma moeda ao pé do centro comercial e, cá de longe, a estátua lia perfeitamente: “República Portuguesa, Cem Escudos”.
Nesse estado de deslumbramento, interessou-se por um jovem que dentro do autocarro lia um livro. Eram contos do catalão Pere Calders, sobre personagens que habitavam as próprias estátuas e à noite saiam para arejar. O engarrafamento foi tão demorado que deu para a réplica do marechal ler o texto completo, ler e indignar-se. Era como se as estátuas fossem invólucro ou repositório e não tivessem de próprio nem vontade nem alma. E deliberou manifestar-se.
Como toda a gente sabe, as estátuas de Lisboa comunicam facilmente umas com as outras. Um não sei que fluido, transportado em bicos de pássaros, em rumorejo de folhas, em volutas de metano, em brisas atlânticas, mantém entre elas uma conversação satisfatória. O Adamastor, ali a Santa Catarina, não tardou, e resmungava: “lá está o Saldanha com as dele” e o leão do Marquês emitiu um subtil rugido. O cavalo de D. José pisou mais uma víbora e o monarca, frívolo como era, sorriu-lhe a ideia do movimento. Mas todas as estátuas de Lisboa aguardaram a pronúncia sábia e feroz do rei fundador, muito hirto, lá nas alturas do castelo. D. Afonso Henriques sopesou os inconvenientes de acartar com o peso de escudo, espada e malha de ferro. Mas lembrou-se, ao fim dumas horas, de que era um rei enérgico. E proferiu: “Sus, sus!” Era o que todas as estátuas queriam ouvir, para abandonar os pedestais. A noite já ia adiantada.
“Meu chefe, meu chefe!”. O jovem soldado da GNR, Malaquias de Sousa, entrava esbaforido no gabinete do superior, na casa da guarda da Assembleia da República. O sargento, e outros, não correram, voaram para ver. Todo aquele largo era um mar de estátuas paradas fitando o edifício, algumas em pose ameaçadora. A espada de Saldanha muito nervosa parecia pronta a trucidar. A Maria da Fonte sorria, sinistra, de pistolas ao léu. E as figuras da guerra peninsular arrastavam um canhão basto suspeito. O pior é que os dois leões das escadarias andavam por ali à solta e deitavam olhares rancorosos para o leão do Marquês de Pombal. “Passe aí o telemóvel”, ordenou o sargento em voz trémula. Era uma situação que exigia consulta aos superiores.
Ainda Eça de Queirós, na cauda da manifestação, tagarelava com Camilo Castelo Branco, na presença da Nudez Forte da Verdade, quando um frémito percorreu o arvoredo da Estefânia. Não chegou a turbilhão, mas foi suficientemente sensível para que um sujeito que comia um bife na Portugália exclamasse: “Ena, pá!” O busto de Cesário Verde convocava o de Guerra Junqueiro e desafiava-o para um desfile. E de busto em busto se transmitiu que não era justo que as estátuas em corpo inteiro se manifestassem e que os bustos se ficassem. Afinal, se nos bustos havia um corpo incompleto, a verdade é que exibiam “mais concentração do espírito”. A frase foi do busto de um poeta, mas não me parece que tenha sido Junqueira ou Verde. E, alinhados na Alameda de D. Afonso Henriques, os bustos de Lisboa vieram todos avenida abaixo, aos saltinhos, muito alegretes. Aquilo ressoava alto, e houve moradores que telefonaram para a polícia a protestar. Alguns agentes ainda estão hoje a consultar legislação e regulamentos camarários. Mas é duvidoso que encontrem qualquer disposição legal que proíba um busto ou uma estátua de circular pela cidade por seu próprio pé, base ou coto.
A notícia chegou a altas instâncias e ao governo. O ministro competente, farto de chamadas, ia dizendo: ”deixem lá, isto passa!”! E tinha razão. As estátuas cansaram-se de estar ali, a olhar. Nem sequer chegou a haver bulha de leões porque o Marquês deitou-lhes cá um olhar que eles sentaram-se logo, muito domésticos.
Quando os bustos, rua de S. Bento afora, chegaram à Assembleia da República, numa revoada de clipocloques, as estátuas decidiram retirar-se, com dignidade. Não queriam aquela companhia, nada de misturas. Os bustos, desacompanhados, deram umas voltas, provocaram os leões com assobiadelas e voltaram para os seus pedestais. A manhã foi encontrar estátuas e bustos voltados para o lado oposto ao do costume. Não se tratou de combinação prévia. Foi uma convergência objectiva.
Houve em Lisboa quem se interessasse pelo assunto. A própria comunicação social chegou a ter informação e preparou-se para noticiar: “Insegurança: vandalismo generalizado desloca monumentos”. No entanto, nessa noite, um jogador de bola agrediu a própria mãe, ceguinha, e mobilizou as parangonas.
Quando, um mês depois, estátuas e bustos se preparavam para nova manifestação, foram surpreendidos por uma directiva comunitária proposta por Portugal e aceite por unanimidade. Todos os bustos e estátuas da Europa passaram a ser obrigatoriamente amarrados com cabos de aço.
A alguns formadores de opinião a medida pareceu pateta e, sobre isso, dispendiosa. Mas talvez tivesse valido a pena, pelos desassossegos que se pouparam.

Mário de Carvalho, 2005. “Corpos incompletos”, in Mealibra, n.º 16, série 3, Verão de 2005


sábado, 6 de abril de 2013


conto



Um segredo
Eu sou a guardiã dos segredos. Ao meu tampo de madeira velha encosta-se uma mulher bonita a escrever cartas de amor. Só eu a oiço suspirar ou rir docemente, só eu sinto, contra o meu rebordo, as batidas do seu coração.
Nas minhas pequenas gavetas, adornadas de um relevo que mãos hábeis bordaram com a goiva, escondem-se palavras secretas, papéis antigos, documentos indispensáveis que contam a história de uma família.
Ninguém viola os meus segredos. Com uma chavinha de prata, de que pende um bonito cordão vermelho com franja de seda na ponta, fecham os meus esconderijos. Quem o faz é a mulher bonita que escreve cartas e guarda outras nos meus escaninhos, como antes fez a mãe dela e, antes da mãe, a avó.
Chamam-me papeleira porque guardo papéis. Na gaveta de baixo do meu bojudo ventre, há livros de poemas com flores secas entaladas nas páginas e álbuns de fotografias. Nas gavetas pequenas há objectos esquecidos, colares de pérolas rebentados, dados de madrepérola com que alguém jogou num dia especial, uma tesourinha de prata, um sinete de brasão, lacre, chaves talvez de outros segredos que ninguém lembra mais.
Há também, num dos meus escaninhos, um anjo de marfim com a asa partida, e o pedaço decepado das penas está embrulhado em papel de seda lilás.
Este anjo costuma conversar comigo no silêncio da noite. A ele, porque é um anjo, posso contar os segredos, os que guardo por vocação e destino e que ninguém conhece além da mulher bonita, e os meus próprios que ninguém quer conhecer, nem mesmo a mulher bonita.
Porque eu, a guardiã dos segredos dos outros, também tenho um segredo só meu.
Esse segredo é a saudade do tempo em que era um carvalho no meio da floresta e sonhava viver eternamente a namorar o vento e a abrigar aves nos meus ramos.
É por isso que quando se apagam as luzes e através das cortinas posso sentir o temporal, a brisa ou o luar, a madeira do meu corpo geme suavemente, estala um pouco, suspira devagar e eu sonho que sou ainda o carvalho e estou a abraçar a tempestade, a acariciar os cabelos da brisa, a beijar os dedos do luar, a embalar o sono dos pássaros.
De dia, a mulher bonita senta-se ao pé de mim e perfuma o meu tampo encerado com o aroma dos seus cotovelos que me lembra a alfazema no chão da floresta.
Escreve: Meu Amor…
O resto não posso contar, porque é segredo.
 Rosa Lobato de Faria, 2004. “Um segredo”, in Os Linhos da Avó. Porto: ASA