Corpos incompletos
Restaurada
de fresco, a estátua do marechal Saldanha, na praça do mesmo nome, começou logo
a sentir melhorias de vista. Distinguia pormenores muito afastados e considerou
que tinha valido a pena aquela maçada de tapumes, andaimes, lixívias,
abrasivos, químicos fedorentos. Um arrumador de automóveis recolhia uma moeda
ao pé do centro comercial e, cá de longe, a estátua lia perfeitamente: “República
Portuguesa, Cem Escudos”.
Nesse
estado de deslumbramento, interessou-se por um jovem que dentro do autocarro
lia um livro. Eram contos do catalão Pere Calders, sobre personagens que
habitavam as próprias estátuas e à noite saiam para arejar. O engarrafamento
foi tão demorado que deu para a réplica do marechal ler o texto completo, ler e
indignar-se. Era como se as estátuas fossem invólucro ou repositório e não
tivessem de próprio nem vontade nem alma. E deliberou manifestar-se.
Como
toda a gente sabe, as estátuas de Lisboa comunicam facilmente umas com as
outras. Um não sei que fluido, transportado em bicos de pássaros, em rumorejo
de folhas, em volutas de metano, em brisas atlânticas, mantém entre elas uma
conversação satisfatória. O Adamastor, ali a Santa Catarina, não tardou, e
resmungava: “lá está o Saldanha com as dele” e o leão do Marquês emitiu um subtil
rugido. O cavalo de D. José pisou mais uma víbora e o monarca, frívolo como
era, sorriu-lhe a ideia do movimento. Mas todas as estátuas de Lisboa
aguardaram a pronúncia sábia e feroz do rei fundador, muito hirto, lá nas
alturas do castelo. D. Afonso Henriques sopesou os inconvenientes de acartar
com o peso de escudo, espada e malha de ferro. Mas lembrou-se, ao fim dumas
horas, de que era um rei enérgico. E proferiu: “Sus, sus!” Era o que todas as
estátuas queriam ouvir, para abandonar os pedestais. A noite já ia adiantada.
“Meu
chefe, meu chefe!”. O jovem soldado da GNR, Malaquias de Sousa, entrava
esbaforido no gabinete do superior, na casa da guarda da Assembleia da
República. O sargento, e outros, não correram, voaram para ver. Todo aquele
largo era um mar de estátuas paradas fitando o edifício, algumas em pose
ameaçadora. A espada de Saldanha muito nervosa parecia pronta a trucidar. A
Maria da Fonte sorria, sinistra, de pistolas ao léu. E as figuras da guerra
peninsular arrastavam um canhão basto suspeito. O pior é que os dois leões das
escadarias andavam por ali à solta e deitavam olhares rancorosos para o leão do
Marquês de Pombal. “Passe aí o telemóvel”, ordenou o sargento em voz trémula.
Era uma situação que exigia consulta aos superiores.
Ainda
Eça de Queirós, na cauda da manifestação, tagarelava com Camilo Castelo Branco,
na presença da Nudez Forte da Verdade, quando um frémito percorreu o arvoredo
da Estefânia. Não chegou a turbilhão, mas foi suficientemente sensível para que
um sujeito que comia um bife na Portugália exclamasse: “Ena, pá!” O busto de
Cesário Verde convocava o de Guerra Junqueiro e desafiava-o para um desfile. E
de busto em busto se transmitiu que não era justo que as estátuas em corpo
inteiro se manifestassem e que os bustos se ficassem. Afinal, se nos bustos
havia um corpo incompleto, a verdade é que exibiam “mais concentração do
espírito”. A frase foi do busto de um poeta, mas não me parece que tenha sido
Junqueira ou Verde. E, alinhados na Alameda de D. Afonso Henriques, os bustos
de Lisboa vieram todos avenida abaixo, aos saltinhos, muito alegretes. Aquilo
ressoava alto, e houve moradores que telefonaram para a polícia a protestar.
Alguns agentes ainda estão hoje a consultar legislação e regulamentos
camarários. Mas é duvidoso que encontrem qualquer disposição legal que proíba
um busto ou uma estátua de circular pela cidade por seu próprio pé, base ou
coto.
A notícia
chegou a altas instâncias e ao governo. O ministro competente, farto de
chamadas, ia dizendo: ”deixem lá, isto passa!”! E tinha razão. As estátuas
cansaram-se de estar ali, a olhar. Nem sequer chegou a haver bulha de leões
porque o Marquês deitou-lhes cá um olhar que eles sentaram-se logo, muito
domésticos.
Quando
os bustos, rua de S. Bento afora, chegaram à Assembleia da República, numa
revoada de clipocloques, as estátuas decidiram retirar-se, com dignidade. Não
queriam aquela companhia, nada de misturas. Os bustos, desacompanhados, deram
umas voltas, provocaram os leões com assobiadelas e voltaram para os seus
pedestais. A manhã foi encontrar estátuas e bustos voltados para o lado oposto
ao do costume. Não se tratou de combinação prévia. Foi uma convergência
objectiva.
Houve
em Lisboa quem se interessasse pelo assunto. A própria comunicação social
chegou a ter informação e preparou-se para noticiar: “Insegurança: vandalismo
generalizado desloca monumentos”. No entanto, nessa noite, um jogador de bola
agrediu a própria mãe, ceguinha, e mobilizou as parangonas.
Quando,
um mês depois, estátuas e bustos se preparavam para nova manifestação, foram
surpreendidos por uma directiva comunitária proposta por Portugal e aceite por
unanimidade. Todos os bustos e estátuas da Europa passaram a ser
obrigatoriamente amarrados com cabos de aço.
A alguns
formadores de opinião a medida pareceu pateta e, sobre isso, dispendiosa. Mas
talvez tivesse valido a pena, pelos desassossegos que se pouparam.
Mário de
Carvalho, 2005. “Corpos incompletos”, in Mealibra, n.º 16, série 3, Verão de
2005