Um segredo
Eu sou a guardiã dos
segredos. Ao meu
tampo de madeira velha encosta-se uma mulher bonita a escrever cartas de amor.
Só eu a oiço
suspirar ou rir docemente, só eu sinto, contra o meu rebordo, as batidas do seu coração.
Nas minhas pequenas gavetas,
adornadas de um relevo que mãos hábeis bordaram com a goiva, escondem-se
palavras secretas, papéis antigos, documentos indispensáveis que contam a
história de uma família.
Ninguém
viola os meus
segredos. Com uma chavinha de prata, de que pende um bonito cordão vermelho com
franja de seda na ponta, fecham os meus esconderijos. Quem o faz é a mulher bonita que escreve cartas e guarda outras nos meus escaninhos, como
antes fez a mãe dela e,
antes da mãe, a avó.
Chamam-me papeleira porque guardo papéis. Na gaveta de
baixo do meu bojudo
ventre, há livros de poemas com flores secas entaladas nas páginas e álbuns de
fotografias. Nas gavetas pequenas há objectos esquecidos, colares de pérolas
rebentados, dados de madrepérola com que alguém jogou num dia especial, uma
tesourinha de prata, um sinete de brasão, lacre, chaves talvez de outros
segredos que ninguém lembra mais.
Há
também, num dos meus
escaninhos, um anjo de marfim com a asa partida, e o pedaço decepado das penas está
embrulhado em papel de seda lilás.
Este
anjo costuma conversar comigo
no silêncio da noite. A ele, porque é um anjo, posso contar os segredos, os que guardo por vocação e destino e
que ninguém conhece além da mulher
bonita, e os meus
próprios que ninguém quer conhecer, nem mesmo a mulher bonita.
Porque
eu, a guardiã dos
segredos dos outros, também tenho um segredo só meu.
Esse
segredo é a saudade do tempo em que era um carvalho no meio da floresta e
sonhava viver eternamente a namorar o vento e a abrigar aves nos meus ramos.
É
por isso que quando se apagam as luzes e através das cortinas posso sentir o temporal, a
brisa ou o luar, a madeira do meu corpo geme suavemente, estala um pouco, suspira devagar e eu sonho que sou ainda o carvalho e
estou a abraçar a
tempestade, a acariciar os cabelos da brisa, a beijar os dedos do luar, a
embalar o sono dos pássaros.
De
dia, a mulher bonita
senta-se ao pé de mim
e perfuma o meu
tampo encerado com o aroma dos seus
cotovelos que me
lembra a alfazema no chão da floresta.
Escreve: Meu Amor…
O
resto não posso
contar, porque é segredo.
Rosa Lobato de Faria, 2004. “Um segredo”, in Os Linhos da Avó. Porto: ASA
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