sábado, 6 de abril de 2013


conto



Um segredo
Eu sou a guardiã dos segredos. Ao meu tampo de madeira velha encosta-se uma mulher bonita a escrever cartas de amor. Só eu a oiço suspirar ou rir docemente, só eu sinto, contra o meu rebordo, as batidas do seu coração.
Nas minhas pequenas gavetas, adornadas de um relevo que mãos hábeis bordaram com a goiva, escondem-se palavras secretas, papéis antigos, documentos indispensáveis que contam a história de uma família.
Ninguém viola os meus segredos. Com uma chavinha de prata, de que pende um bonito cordão vermelho com franja de seda na ponta, fecham os meus esconderijos. Quem o faz é a mulher bonita que escreve cartas e guarda outras nos meus escaninhos, como antes fez a mãe dela e, antes da mãe, a avó.
Chamam-me papeleira porque guardo papéis. Na gaveta de baixo do meu bojudo ventre, há livros de poemas com flores secas entaladas nas páginas e álbuns de fotografias. Nas gavetas pequenas há objectos esquecidos, colares de pérolas rebentados, dados de madrepérola com que alguém jogou num dia especial, uma tesourinha de prata, um sinete de brasão, lacre, chaves talvez de outros segredos que ninguém lembra mais.
Há também, num dos meus escaninhos, um anjo de marfim com a asa partida, e o pedaço decepado das penas está embrulhado em papel de seda lilás.
Este anjo costuma conversar comigo no silêncio da noite. A ele, porque é um anjo, posso contar os segredos, os que guardo por vocação e destino e que ninguém conhece além da mulher bonita, e os meus próprios que ninguém quer conhecer, nem mesmo a mulher bonita.
Porque eu, a guardiã dos segredos dos outros, também tenho um segredo só meu.
Esse segredo é a saudade do tempo em que era um carvalho no meio da floresta e sonhava viver eternamente a namorar o vento e a abrigar aves nos meus ramos.
É por isso que quando se apagam as luzes e através das cortinas posso sentir o temporal, a brisa ou o luar, a madeira do meu corpo geme suavemente, estala um pouco, suspira devagar e eu sonho que sou ainda o carvalho e estou a abraçar a tempestade, a acariciar os cabelos da brisa, a beijar os dedos do luar, a embalar o sono dos pássaros.
De dia, a mulher bonita senta-se ao pé de mim e perfuma o meu tampo encerado com o aroma dos seus cotovelos que me lembra a alfazema no chão da floresta.
Escreve: Meu Amor…
O resto não posso contar, porque é segredo.
 Rosa Lobato de Faria, 2004. “Um segredo”, in Os Linhos da Avó. Porto: ASA



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