Maria
do Rosário Pedreira
em
http://horasextraordinarias.blogs.sapo.pt/
Como em tudo na vida, é preciso saber onde aperta o
sapato, mas parece que tomei o gosto a estas brincadeiras, e hoje
permito-me explorar o vestuário na língua portuguesa, que é tudo menos um espartilho
– na verdade dá pano para mangas – quando uma pessoa percebe como descalçar
a bota. Pois bem, agora que andamos todos de tanga, que fazem de
nós gato-sapato e não temos outro remédio senão apertar o cinto
no último furo, há por aí uns senhores que cometem crimes de colarinho
branco a quem nada de grave acontece: o pé-de-meia que têm
chega-lhes para o resto da vida – e isso é uma pedra no nosso sapato.
Mas de nada serve cortarmos-lhes na casaca, porque, mesmo metidos numa camisa
de onze varas ou num colete-de-forças, é provável que não sejam
sequer julgados (ou que alguém tenha recebido luvas para os safar, sei
lá, ajudando-os a sacudir a água do capote). Nós, pelo contrário, que
não enfiamos a carapuça por pecadilhos deste teor, andamos todos de
calças na mão, quando não a apanhar bonés, e vemo-nos todos os dias
obrigados a arregaçar as mangas para nos sustentarmos se não queremos bater
a bota cedo demais. Se perguntam se acho isto justo, pois dir-vos-ei que
essa é quase uma pergunta de algibeira, obviamente não bate a bota
com a perdigota ver um criminoso ser tratado com punhos de renda ou luva
branca (mesmo sendo eu bota-de-elástico); mas infelizmente há por aí
muito lambe-botas a quem a corrupção assenta como uma luva e que,
depois de uma boa combinação, é capaz de pregar barretes à
direita e à esquerda em defesa destes senhores (senhores, qual carapuça!);
alguns até viraram a casaca e agora vestem a camisola por eles,
conseguindo meter em seu lugar na cadeia apenas um dos seus mangas-de-alpaca,
num golpe de se lhes tirar o chapéu. Enfim, não podendo eu dar-lhes
as mil sapatadas que merecem, resta-me ir ler um livro de bolso
para me distrair destas ignomínias; quem não goste de ler pode também dançar sapateado,
ou apanhar uma touca para se alienar, ou perseguir o primeiro rabo de
saias que encontrar, retirar-lhe o cinto de castidade e...
divertir-se, em suma (usando camisa de vénus, claro). Bem, isto hoje ia
dando bota... Mas, se não gostaram, olhem, chapéu!
P.S. Escrevi este post há mais de uma semana, na verdade, e
parece irónico que ele seja publicado hoje. Contudo, quero dizer que estava a
pensar nos «banqueiros» quando o escrevi.
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Hoje é dia de falar de palavras e expressões que os
nossos jovens provavelmente já não usam e que é importante que apareçam de vez
em quando em textos e conversas, para que não morram. Um dia destes, por
exemplo, a minha mãe contou-me que tinha ido de escantilhão ao
supermercado e que estava cansada porque andara toda a semana numa fona
(note-se, tem 90 anos, mas ainda não está a cair da tripeça). Como a arenga
não parecia terminar, achei por bem pôr-me na alheta. Há pessoas
muito mais novas do que ela que são um pelém (adoro esta, usada
frequentemente pelo escritor Mário Cláudio e que me cheira a infância, pois a
minha avó paterna aplicava-a a meninos que adoeciam por tudo e por nada, sempre
queixosos). Outra palavra que desapareceu do uso corrente – e se calhar ainda
bem – é enjeitadinha, originalmente referindo-se a criança rejeitada ou
abandonada pelos pais e presente em muitos fados da primeira metade do século
XX. Tal como a expressão a esmo, que eu aprecio pela sonoridade estranha
e que é hoje quase sempre substituída por «ao acaso», «à toa» ou
«indistintamente». Um dia disse a uma rapariga que cortara o cabelo que lhe
tinha feito bem ir ao baeta; ficou na mesma, não conhecia a
expressão. Por fim, três outras palavras que só as pessoas de alguma idade
ainda usam: pífio (já ouvi o professor Marcelo dizê-la a propósito de
uma remodelação governamental insignificante); flausina (o mesmo que sirigaita)
e capitosa (que vem de capo, cabeça, e significa «obstinada», mas
sempre a ouvi designar louras que causam impressão indelével). E pronto, para o
mês que vem, há mais.
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Como há uns tempos os Extraordinários se divertiram
com um texto que aqui publiquei sobre «vegetarianismo linguístico», resolvi
voltar à carga e dizer que, para evitar os males da carne vermelha, sempre
podemos recorrer às aves e fazer, na mesma, um brilharete lexical. Senão,
vejamos: No galinheiro de um estádio de futebol, pode ser triste um
adepto ver perder a sua equipa por causa de um frango – é, na verdade,
um galo se isso acontecer e até o pode deixar com pele de galinha;
pior ainda é se, à saída, está a chover e chega a casa um pinto. Se
assim for, mais vale à mulher, que é uma gralha, calar o bico
(antes que ele lhe corte o pio), comer como um pisco e a correr a
sopa a ferver (o que vale é que tem goela de pato) e ir deitar-se com
as galinhas para evitar discussões (já tem penas que cheguem). O seu
vizinho, um pato-bravo da habitação clandestina, casado com uma perua
de nariz aquilino com a mania das grandezas, queria multiplicar a
fortuna, acreditou na galinha dos ovos de ouro (foi um pato), contou
com o ovo no cu da galinha, mas o negócio trazia água no bico e,
afinal, acabou depenado (mais valia um pássaro na mão, disse-lhe
a mãe, uma pata-choca com pés de galinha debaixo dos olhos). Por
sua vez, o sobrinho, um borracho que tinha o hábito de se pavonear
por aí, verdadeiro galifão, pôs-se a galar a pombinha do
andar de cima, que era o patinho-feio do prédio, papagueou-lhe
uns poemas de amor, ela derreteu-se, caiu que nem um patinho,
mostrou-lhe a passarinha (no Norte seria o pito) e agora vem
aí a cegonha – e tomara que a rapariga seja uma mãe-coruja, porque o
rapaz é um galo doido, capaz de a trocar por uma pega à primeira
oportunidade (estes galarotes deviam era morrer como tordos, comentou
a mãe da desonrada). Gostaram? Estou a tornar-me uma ave rara, mas
escarafunchar nos dicionários é ou é não o ovo de Colombo?
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Cada vez conheço mais gente que deixou de comer carne.
Reconheço que a carne, sobretudo a vermelha, não faz muito bem à saúde – e até
como bastante peixe quando estou na Ericeira, porque lá é bom e fresco – mas
não sei se estaria pronta para me alimentar apenas de vegetais, como algumas
pessoas que conheço. Em todo o caso, a nossa língua também pode ser vegetariana
e, mesmo assim, rica. Quanto a fruta, temos desde logo um homem bonito a quem
se pode chamar um figo e que, para algumas mulheres, é um pêssego.
Se esse homem usa uma barba reduzida, usa pêra, embora também possa
levar um pêro se houver briga e a coisa azedar (o que não é pêra doce).
Se nos deixa na mão, ficamos, pois claro, com um melão. Conhecemos
pessoas de ginjeira, se as conhecemos bem. Um banana é um
parvo, enquanto uma coisa aborrecida é uma pessegada. Todos temos maçãs
no rosto e os homens ainda têm maçã-de-adão. Uma coisa de assombro é de escacha-pessegueiro
(já tinham ouvido esta?) e, quando é simplesmente areia demais para a nossa
camioneta, dizemos vulgarmente que é muita fruta. Com os legumes, o
português é igualmente criativo. Uma pepineira é uma pechincha e o que é
seguro são favas contadas. Anda-se à batatada quando há tareia.
Pode ter-se cabeça de abóbora e de alho chocho. Os lisboetas são alfacinhas,
os desajeitados são nabos, os ruivos são cenouras, os narizes
grandes são pencas. Ficamos num molho de brócolos quando estamos
de rastos (se calhar em virtude de nos termos metido numa alhada). Os tomates
são o nome mais comum dos testículos. Ficar com os louros também é comum
a quem rouba vitórias alheias. Se o nosso interlocutor não quer perceber o que
lhe dizemos, podemos comentar: Olha, batatinhas… Um relógio grande é uma
cebola e uma confusão é uma salada. Viram como podemos ser
vegetarianos de vez em quando?
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